ABRUPTO

14.12.09


DICIONÁRIO DOS DIAS DE HOJE



Há palavras que em determinadas alturas inquinam tudo. Basta dizê-las e logo o ar fica respirável a metade, cortam o ar a meio, de um lado há ar a mais e do outro a menos. São variantes da "novilíngua" orwelliana e circulam entre a política e a comunicação social. Nos dias de hoje circulam em número muito elevado, gerando uma cortina de fumo sobre a realidade. Seguem-se alguns exemplos.

Atirar lama aos adversários políticos - Enunciar a existência de investigações judiciais em que o primeiro-ministro é referido, seja porque se passou no seu ministério, seja porque está lá a sua família, seja porque apareceu a falar com um dos suspeitos, seja por qualquer razão. Querer esclarecimentos sobre estas matérias então é absolutamente condenável.

Outra variante é:

Comportamentos antidemocráticos (ou vergonhosos, ou inadmissíveis, ou demagógicos, etc.) - É falar da "personalidade" do primeiro-ministro, ou do caso Freeport ou do caso Face Oculta.

Conversas pessoais - Conversas do primeiro-ministro em que o principal detentor do poder executivo discute com um amigo arguido numa investigação judicial, matérias em que decide como governante. Presume-se que o que lhes dá o carácter pessoal é a utilização de uma linguagem obscena, escatológica e pessoalmente insultuosa.

Crise internacional - A explicação para tudo o que corre mal. A explicação para tudo que corre bem é a qualidade da governação e a sageza e determinação do primeiro-ministro.

Crise internacional - Cataclismo internacional que Portugal defrontou "bem preparado". Cataclismo internacional em que Portugal foi o último a entrar e do qual foi o primeiro a sair.

Dívida - Preocupação dos "velhos do Restelo" que não são keynesianos.

Dizer a verdade ao Parlamento/Não dizer a verdade ao Parlamento - Comportamento em desuso. Forma de lutar contra a provocatória "política de verdade" da líder da oposição, não falando verdade.

Espero que o PSD resolva a sua crise interna - Espero que Manuela Ferreira Leite desapareça o mais rapidamente possível. A senhora é muito intransigente com as mentiras circulantes e acha que o PS e o primeiro-ministro estão a fazer mal ao país.

Espero que venha uma nova direcção do PSD "responsável" com que "se possa falar" - Espero que o PS se possa entender sem grandes ondas com o PSD numa partilha de bens e influência, em que o PS mande e o PSD ganhe alguma coisa. No fundo, queremos todos o mesmo, não é?



Espionagem política - Fazerem-se escutas legais e válidas a responsáveis do PS.

Espreitar pela fechadura, coscuvilhices - O mesmo do anterior. Querer saber-se por que razão um juiz e um magistrado entenderam que podia haver conteúdo criminal numa conversa do primeiro-ministro.

Estatísticas - Quando usadas pelo primeiro-ministro, são uma forma de plasticina para adultos.

Homofobia - Ser crítico do casamento dos homossexuais.

Islamofobia - Ter dúvidas sobre a compatibilidade de certas práticas tradicionais no islão com os fundamentos do Estado de direito e das democracias. Deve ser condenada severamente em nome do multiculturalismo e do "diálogo das civilizações".

A maior do mundo, a maior da Europa, a maior da Europa do Sul, a maior do mundo em zona urbana, a maior de sempre a ser construída, a mais moderna do mundo, a mais moderna da Europa, a mais moderna da Península Ibérica, a mais avançada do mundo, a mais avançada da Europa, a mais avançada no seu género, etc., etc. - Caracterização de qualquer coisa que seja inaugurada na área da energia pelo primeiro-ministro no país mais avançado no mundo em matéria de tecnologia de inaugurações.

Maioria absoluta - Momento em que a governação era tão estável, eficaz e maviosa que, ao fim de quase cinco anos, uma parte do país estava em guerra contra outra, as escolas estavam bloqueadas e todos os indicadores estavam a cair por aí abaixo mesmo antes dos efeitos da crise internacional.



Não sabia oficialmente - Sabia de tudo, só que não chegou nada por ofício, pelo que a parte do cérebro que tinha a informação "não-oficial" não comunicou com a aparte do cérebro onde está o arquivo dos papéis oficiais e por isso pode dizer ao Parlamento que "não sabia de nada" sem mentir.

Orçamento redistributivo - Orçamento que não se pode chamar rectificativo porque o ministro das Finanças disse que nunca faria nenhum.

Parlamento - O actual lugar do mal, onde habita o Diabo da irresponsabilidade.

Politização da justiça - Um magistrado do Ministério Público e um juiz ousarem considerar que o primeiro-ministro podia ter cometido um crime detectado numas escutas fortuitas.

Presidente da República - Entidade que se nomeia para se dizer que está "fragilizado".

Presidente da República - Entidade a que se apela a que fale se ele falar contra o Parlamento e para "pôr na ordem" a oposição. Entidade a que se apela a que não fale se for para nos prevenir sobre a gravidade da situação económica, porque isso significa uma inaceitável intromissão na área da governação.

Responsabilidade - Responsável é votar com o Governo e o PS, irresponsável é votar com a oposição.

Velhos do Restelo - Convinha ir ler Camões e Sá de Miranda para se saber o que são, antes de se usar tal classificação.

Violar o segredo de justiça - Crime que é o supremo crime se se tratar de divulgar peças de processos que incomodam o PS, o Governo e o primeiro-ministro. Divulgar peças de processos que incomodam o PSD, o PP ou outros partidos da oposição é uma forma menor de violar o segredo de justiça, inteiramente desculpável pelo interesse público.

(Versão do Público de 12 de Dezembro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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