ABRUPTO

22.11.09


UMA BUROCRACIA POLÍTICA DE PRIMEIRA
.......................................................................escolhe
...................................................................................UMA BUROCRACIA POLÍTICA DE SEGUNDA


Terminadas as últimas aflições com o Tratado de Lisboa, pressionados os irlandeses a votar "sim" sob pena das maiores desgraças lhes acontecerem num momento difícil em que estavam, isolado Vlaclav Klaus, começou a corrida para se moldarem as instituições da União Europeia ao novo Tratado. Afastado também o risco de um referendo britânico, em que o "não" era garantido, a máquina burocrática da Europa conheceu uma pequena aceleração. Escolho as palavras com cuidado, "máquina burocrática" para designar o que é hoje essencialmente a União Europeia, conduzida sem fulgor pelos actuais governantes europeus, e "pequena aceleração" porque já se percebeu que pouca coisa vai mudar nos tempos mais próximos, porque não só há muita inércia, como não há muita vontade para sair da inércia. Não estamos em tempos de grandes decisões, porque ou custam dinheiro, que ninguém está disposto a pagar, ou implicam deslocações de poder que ninguém tem força para garantir, mesmo entre o directório que de facto dirige a Europa.

Como se percebeu, Portugal chegou ao ponto zero da sua capacidade de influência europeia, e nem sequer se ouviu alguém emitir uma opinião, quanto mais um interesse, nem que fosse sobre o perfil dos novos cargos. Não valia a pena, e nem sequer vale a pena fingir que vale a pena. A União Europeia está muito longe e a nossa debilidade é tão grande que não contamos para nada. Podiam ter saído nas escolhas o Xá da Pérsia no exílio, ou um candidato do Official Monster Raving Loony Party, que ninguém perceberia a diferença com Catherine Ashton e Herman Van Rompuy.

Poucas coisas revelam mais a situação actual da Europa do que estas escolhas para os dois cargos que era suposto resolverem os impasses de direcção e de representação que a União Europeu conhece, e, por isso, tudo se passou perante a indiferença geral. À partida, a própria definição dos cargos pelo Tratado de Lisboa já reflecte um crescendo burocrático. O cargo de presidente da União representa uma fonte de conflitos institucionais com o presidente da Comissão, e sempre que um se impuser, enfraquece o outro. Tudo indica que a mera existência do cargo aponte para um downgrading do papel de presidente da Comissão, que até agora era a "cabeça" da União. Agora é a "outra" cabeça, a do chapéu mais antigo e gasto, que empalidecerá com o novo chapéu, durante algum tempo.

Quanto ao novo "ministro" dos Negócios Estrangeiros, a segunda variante do "número de telefone que Kissinger dizia que não tinha", dificilmente conhecerá muito mais sucesso do que a primeira variante, o "senhor PESC", Javier Solana. O problema da existência ou melhor, da inexistência, de uma política externa europeia é estrutural e não é resolvido acrescentando títulos cada vez mais pomposos a uma ausência de condições e de vontade política de ter uma política comum que seja mais do que a do mínimo denominador: Londres, Berlim, Paris farão o que entenderem e só usarão, insisto, usarão, a nova "ministra" quando tal for útil para a sua própria política externa, quando tal corresponder a uma vontade comum. Como é óbvio, para Lisboa, ou Haia, ou Praga, ou Vilnius, ou Varsóvia, resta um papel de subordinarem as sua políticas externas aos ditames europeus, por regra. As excepções, como por exemplo o adiamento do reconhecimento do Kosovo, serão isso mesmo, as excepções que confirmam a regra.

Mas Catherine Ashton, ela própria uma burocrata, contará com uma nova burocracia especializada, o Serviço Europeu para a Acção Externa, ou seja, uma diplomacia própria da União dependente de Bruxelas. Diga-se de passagem que isso será mais um prego no caixão da existência de uma diplomacia portuguesa própria, porque não será difícil de imaginar como é atractivo a governos pressionados pelo deficit fechar embaixadas ou não as abrir e entregar a representação de Portugal a embaixadores da União. Já há muito sítios onde tal acontece, mas ainda sem o grau de institucionalização que este novo serviço externo permitirá.

A escolha de Herman Van Rompuy e Catherine Ashton não deveria surpreender ninguém que acompanhe a União nos últimos anos. Já de há muito tempo que os chefes de governo aceitam apenas como perfil dos cargos liderantes da União personalidades desconhecidas, baças, que em nenhuma circunstância têm força e autoridade política próprias para empalidecerem a sua igualmente frágil liderança política. Na verdade, trata-se da escolha por governantes menores de governantes que eles acham ainda mais menores, das escolhas por uma burocracia de primeira de uma burocracia de segunda, que não lhes faz sombra e que não aspira a ser autónoma.

Estes dois nomes podem vir a ser a maior surpresa do mundo se forem aquilo que não foram até à sua escolha. Pode-se dar-lhes esse benefício de dúvida, mas um primeiro-ministro belga, do plat pays, que não é verdadeiramente um pays, e uma baronesa trabalhista, uma espécie típica da política britânica, que faz parte da House of Lords, sem eleição, e que não tem qualquer experiência de política externa, pareceriam escolhas absurdas se não fosse este critério de escolher pelo cinzento.

A biografia de Van Rompuy é típica dos políticos belgas e não é por acaso que se lhe atribui a quase exclusiva qualidade de negociador, de "homem de diálogo". Como me explicavam os taxistas belgas- sim porque os taxistas não são muito diferentes de terra em terra -, de cada vez que se passava por um buraco na rua ou por um andaime, esta obra era dos "socialistas", esta dos "democratas-cristãos", esta dos valões esta dos flamengos, esta dos "socialistas valões", aquela dos "nacionalistas flamengos", e por aí adiante. Mover-se neste xadrez é o modo como se sobe na política belga e, se se entender que a União é assim, e nós somos os "socialistas valões" e os italianos os "nacionalistas flamengos", então precisamos de um político belga para negociar as obras públicas. Mas a Bélgica é o que é, le plat pays, e aqui o "plat" não é só geográfico.

Os dois serão certamente bem-vindos pela burocracia de Bruxelas, que reconhece os seus e os promove. Mas só com muita imaginação é que se pode considerar que as escolhas são "ambiciosas", e que representam uma nova era europeia que de há muito nos é anunciada para depois de um novo Tratado feito para os desígnios do directório europeu. Vamos ver.

(Versão do Público de 21 de Novembro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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