ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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23.10.09
10:32
(JPP)
O nome que uso em cima é uma adaptação própria a partir da tradução portuguesa do inglês Attention-deficit hyperactivity disorder, que substituiu ou aperfeiçoou o Attention-deficit disorder (ADD) que há uns anos era comummente usado em Psiquiatria. Vi naWikipédia essa tradução e embora não esteja certo do rigor da dita, para o que vou dizer chega-me, porque não é a doença da "psique" propriamente dita que me interessa, mas uma sua variante social. Digamos que é um exercício de "psicologia social" pouco rigoroso, impressionista, do género da "psicologia das multidões". É o nome, a descrição da coisa, que, isso sim, me parece mais que interessante. Parece-me certo para uma doença social que alastra por todo o lado, a olhos vistos. Padecemos, nós portugueses, de uma dose forte de Transtorno do Déficit de Atenção Cívica com Hiperactividade Social (TDACHSR, lê-se "tedachserrrr"), não por igual, nem todos, mas cada vez mais. E o efeito social da doença é devastador, ataca o "povo" que é suposto ser sábio, mas que a doença torna cada vez menos sábio, e ataca as elites que já nem sabem o que é ser elite, se é que alguma vez o foram. Registe-se já que a doença ainda é socialmente desigual na sua distribuição entre os adultos, mas já está tão fortemente implantada nas escolas, hoje o seu principal foco de infecção primária, que chegará a todos, ao rapper negro da Amadora, como ao "beto" do colégio da Opus Dei. Perguntem a um professor pela atenção das criancinhas. E já agora perguntem às criancinhas pela atenção do professor. É como uma nova gripe, ataca a todos menos aos mutantes que não sabem que são mutantes e têm lá um gene qualquer que os defende. Mas a calamidade é geral. O doente número um foi certamente um nerd qualquer, depois infectou outros nerds, depois os amadores das últimas modas tecnológicas, depois os autores de blogues, depois os jornalistas, depois as "juventudes" partidárias, já "amolecidas" para a infecção pelo telemóvel, depois a gente da moda, depois alastrou para as instituições, para os negócios, deu origem a um mercado. O vírus do TDACHSR encontrou não só portadores como poderosos centros de infecção. Chegada às escolas, a doença começa de baixo para cima, nos mais novos, e está em plena força nas "novas gerações" e nas ex-"novas gerações". Ou seja, está a fazer-se cada vez mais forte quando essas gerações hoje infantes chegarem à vida cívica, ou seja, a partir do momento em que começam a escrever umas banalidades arrogantes em qualquer sítio da Rede, quando passarem do SMS no telemóvel para o Facebook e o Twitter. Comunica-se também um pouco para os "mais velhos", mas não é ainda dominante. Estes ainda mantêm algum arcaísmo social, alguma "atenção", porque ainda conheceram na sua juventude algum silêncio, algum tempo lento, alguma prevalência da leitura sobre a televisão, ou apenas a televisão e os jornais, mas tudo ainda muito devagar e pouco "interactivo". Ainda prezam a sua privacidade, outro dos bens que se estão a tornar escassos por uma geração que acha normal ter localizadores nos telemóveis e começar qualquer conversa com um "onde estás?". E não lhes passaria pela cabeça colocar fotografias em poses obscenas no hi5, ou dizer "onde estão" de meia em meia hora no Twitter. O que é que caracteriza esta TDACHSR? Uma completa falta de atenção ao que é relevante, cultural, social, económica, politicamente, uma enorme dificuldade de identificar o "ponto" e de ir ao "ponto". Pelo contrário, manifesta-se por uma imersão numa multidão de "pontos", todos igualmente dispersos, todos igualmente irrelevantes. Uma enorme dificuldade em aprender, porque nunca se está no mesmo sítio, nunca se está calado, nunca se pára de se mexer, nunca se desliga o telemóvel, nunca se sai de frente dos ecrãs, televisão e computador, nunca se deixa de falar, de "twitar", de enviar SMS, nunca se deixa de receber "tweets" e SMS, fotografias, sons, vídeos, alguns, poucos, textos. O vírus da TDACHSR produz uma rede muito complexa porque emaranhada, mas é incapaz de gerar uma seta, uma direcção, um sentido, um significado. E produz uma memória curtíssima, uma presentificação absoluta, uma incapacidade de lembrar tempos, e de os comparar. Pode-se "ler" nesta "nuvem"? Poder pode, mas fora dela. É o que fazem os poderosos que se colocam noutro lugar. Atentos. Sem deficit de atenção. Com memória. Focados. No "ponto". Em baixo, no meio, na "interacção", a rede distrai, dispersa, perde, é um labirinto kafkiano em que os que estão nela imersos não sabem verdadeiramente aonde ir. Nem querem saber por que estão demasiado interactivos nesta forma moderna da dança de S. Vito. Não sabem sequer que estão perdidos, mas fazem imenso barulho, mandam imensas mensagens, "twitam" que se fartam, na proporção directa do que não pensam. Fornecem-nos toda uma série de trivialidades. Eu hoje sei a que horas se vão deitar os directores dos jornais portugueses e onde comem e o que comem, e os amores e ódios dos nossos jornalistas escorrem pelo labirinto... Tudo produz "opinião", na maioria dos casos uma espécie de "bocas" mais ou menos envenenadas, como os comentários anónimos, ou uma forma moderna das cartas anónimas e das conversas self righteous nos cafés. Não interessa que os "factóides" (magnífica palavra) sejam boatos, mentiras,inuendos, falsificações, desde que estejam escritos nalgum lado, ganham vida própria e existem "interactivamente". Como não há gravidade, e como o labirinto funciona como o Flatworld de Abbott, onde cai peçonha, fica peçonha. A TDACHSR não é pluralista no seu interesse, mas monista na sua desatenção. Ela mantém fortes relações com o relativismo ético e apaga as distinções entre o saber e a ignorância, a decência e a perversidade, a verdade e a falsidade, o carácter e a esperteza. Tudo passa a valer o mesmo e circula como se fosse o mesmo, porque a TDACHSR lhe tira o sentido, na sua desatenção à diferença, diferença que nasce de "literacias" que exigem atenção, esforço, trabalho, tolerância e vida. Sim, vida. Porque os doentes da TDACHSR não têm tempo para nada que implique alguma quota de realidade. Porque a realidade é demasiado complexa para a desatenção. É que, de vez em quando, o pouco "interactivo" e demasiado antigo mundo real, imperfeito, duro e cruel, desaba sobre a Matrix. (Adaptado do Público de 17 de Outubro de 2009.) (url)
© José Pacheco Pereira
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