ABRUPTO

6.10.09


AS SEREIAS DO PODER


J.W. Waterhouse

"Vem para junto de nós, Ulisses
"

O canto de sereia de um PS enfraquecido, mas legitimado pela vitória eleitoral, soa nestes dias cada vez mais alto e, por todo o lado, os navios deslumbrados encaminham-se para as rochas. Só Ulisses escapará, tapando os ouvidos aos seus marinheiros e amarrando-se ao mastro e, mesmo assim, só a força das cordas o mantém longe da feiticeira.

Todos os sinais já estão aí por todo o lado, uns apelando à "responsabilidade", pedindo ao PSD para que, à revelia das suas posições, aprove um programa socialista que será uma continuidade das políticas que sempre atacou, como se essa fosse quase uma obrigação, ou uma punição por ter perdido as eleições. Na verdade, o problema é outro.

Um poder como o do PS em Portugal tem tradicionalmente atraído para si "colaborações" ingénuas, ou interessadas, de duas maneiras. Uma é sendo forte, marcando bem o seu traço no chão, de modo a que todos saibam que, ou estão daquele lado, ou ficam de fora. Como se dizia numa história espanhola, quem se mexe não fica na fotografia. E quem não fica na fotografia não tem benesses nem protecção. Por muito que agora se ataque o falar-se de "asfixia democrática" (não é o melhor termo, mas serve), o resultado é mesmo esse: perseguições, marginalizações, punições. Como aconteceu com a TVI, posta na ordem, e como está a acontecer no Público. Como aconteceu na DREN, e nas múltiplas DREN que existem por todo o lado. (De passagem, noto que deixar de falar deste ambiente malsão seria um grande favor que se podia fazer ao PS, pela simples razão... que ele existe mesmo.)

Outra forma de atracção é, estando enfraquecido, fazer chantagem para que seja de outros o ónus da sua própria fraqueza. Pretende-se apenas dar lugares e prebendas, e manter intacto o poder que os eleitores enfraqueceram. E, sendo as coisas o que são, sendo os homens o que são, sendo Portugal o que é, como os bens são escassos e a fome é muita, as sereias cantam sempre muito alto.

Herbert James Draper
Por isso, as pressões sobre o PSD já começaram, porque o PS pensa que pode aí ir buscar o "queijo limiano" mais barato e em maior quantidade, aproveitando-se do facto do abalo eleitoral levar alguns a entender que o facto de o PSD ter tido uma derrota eleitoral, isso deveria levar o partido a abandonar o seu programa. Ou, pior ainda, pensar que o partido, entrando numa fase "nova", pode fazer tábua rasa do seu passado e disponibilizar-se para a sereia que canta bem perto, visto que os compromissos contra o "bloco central", que uniram os seus candidatos com uma ou outra excepção, fazem parte da "velha" política. Seria bom que, aconteça o que acontecer dentro do PSD, todos permanecessem fiéis à sua recusa de um novo "bloco central", porque isso separa as águas para o presente e para o futuro.

Tenho passado a semana a repetir algo que é fundamental numa democracia: os votos dão legitimidade, não conferem razão. Mesmo que se entenda que existe uma "razão democrática" medida pela vontade popular, e consequentemente uma não-razão que deveria ser tida em conta por quem não consegue a maioria, a verdade é que em democracia os resultados eleitorais não "unem", não apagam, não destroem as diferenças nem a sua tradução na representação parlamentar. Aliás, seria absurdo pedir, por exemplo, ao PCP que mudasse o seu programa apenas porque nunca ganhou uma eleição e, nesse sentido, foi "reprovado" pelos eleitores. Os eleitores deram ao PS legitimidade para governar, mas não retiraram ao PSD legitimidade para fazer oposição.

Pode haver negociações? Claro que sim, as negociações são importantes em democracia e não mancham ninguém que as faça. Mas há negociações e negociações e não é sadio considerar que pode ser objecto de negociações o núcleo fundamental que diferencia o PS e o PSD. As análises que se fizeram das diferenças programáticas entre o PSD e o PS variavam do preto para o branco. Os teóricos de existência do "centrão" diziam que nada os separava e esse discurso era muito comum nos partidos como o PP e o BE, nos opositores internos no PSD e na comunicação social (que absorve numa osmose perfeita sempre o discurso de "nojo" com os partidos do poder).

Mas aos observadores mais imparciais não escapava que o modelo de recuperação da crise/crescimento, o "modelo político-económico" era muito distinto no PS e no PSD. Um governo socialista pode aceitar algumas medidas que estão no programa do PSD, como por exemplo o fim do Pagamento Especial por Conta, ou outras medidas avulsas no campo fiscal, mas nunca deslocará o grosso dos recursos do Estado do grande investimento público para as pequenas e médias empresas - e isso faz uma diferença significativa -, nunca substituirá uma política de subsídios directos do Estado em detrimento de uma política que use as IPSS, ou a rede social da Igreja, nunca dará importância à dívida, etc., etc. E não o fará porque a sua concepção do Estado, mais do que socialista, é jacobina e a do PSD não o é. Ou seja, o sentido global da política económica, financeira, social do Governo PS não mudará, logo quem pensa - como eu penso e muita gente no PSD e fora dele - que esta é uma receita para o desastre, e para manter Portugal afastado de padrões europeus, não tem razão nenhuma para deixar de fazer oposição nas mesmas linhas e no mesmo sentido, sob pena de se tornar apenas num apêndice de um poder perdulário e prejudicial aos interesses nacionais. É que os votos medem uma realidade e fazem uma escolha, mas os resultados das políticas medem-se em termos de bem-estar dos portugueses e do crescimento do país. Aí é que está a "razão".

Um PSD que cedesse aos cantos de sereia do PS e deixasse a oposição ao CDS e ao BE pagaria muito caro por essa cedência, perderia identidade e daria razão a todos os que o acusavam de cair nas tentações do "bloco central". O seu futuro seria o de ficar refém do PS, que o deixaria cair em qualquer altura que lhe conviesse, tendo então muito para explicar e muita dificuldade para se construir como alternativa, a partir de uma situação que seria vista como uma promiscuidade política.
Como esperava, muitos dos que para combater Manuela Ferreira Leite a atacavam por deixar a porta aberta ao "bloco central", coisa que não fez e repudiou com clareza, agora criticam-na por pôr em causa a "governabilidade".

A questão não está em saber se há algum Ulisses, mas em saber se há alguma tripulação que aceite tapar os ouvidos com cera, sabendo dos encantos das sereias, e perceber se as cordas são fortes. Hoje, como no mar, junto da bela Capri, as sereias elogiam o herói "responsável" que aceite aproximar-se, para depois lhe dar a morte vil nos rochedos.

(Versão do Público de 3 de Outubro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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