ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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31.8.09
A RELASSA FRAQUEZA Já citei mais de uma vez uma das cartas ficcionais de Fradique Mendes a Madame de Jouarre, em que este descreve a sua chegada de comboio a Lisboa. A carta é uma cruel metáfora sobre Portugal, das mais cruéis e desapiedadas que conheço, e mortiferamente verdadeira. Nela cabe da pior maneira a indústria do "sonho", da "esperança" do "optimismo", com que uns se pretendem distinguir dos outros como sendo melhores. Eles "sonham", os outros não. Essa espécie de oração sobre a "esperança" e o "sonho" tem outras variantes, como seja: "temos que acreditar em nós próprios", "somos capazes", "os portugueses só sabem dizer mal de si próprios diferentemente dos outros povos que nunca o fazem" (quem diz isto não sabe nada dos "outros povos"), "não se pode só dizer mal", etc., etc. Este mambo-jambo piedoso apenas pretende manter os portugueses numa espécie de estado de estupor cívico, ignorando a sua realidade e os seus problemas, envolvendo-os naquilo que o mesmo Eça chamava o "manto diáfano" da mentira. Este "manto diáfano", muitas vezes mais para o nevoeiro espesso do que para o "diáfano", é assegurado pela propaganda dos poderosos, mas também pela credulidade emocional dos destinatários. O que está de mais cruel na carta de Fradique é a a afirmação de que o êxito desse marketing da "esperança" é que ele tem sucesso, não porque os portugueses tenham qualquer esperança, mas sim porque lhes agrada ouvir esse discurso, na exacta medida em que também lhes agrada o seu oposto, o catastrofismo absoluto. Não tendo que ser bipolares, algum dos lados está errado, ou então somos incapazes de nos colocarmos ao centro, no domínio da Razão. Estão sempre a acenar-nos com o Pathos, e o Pathos "passa" bem quer na televisão quer na retórica política produzida por cínicos para as massas. Sensatez - escassa; expectativas irrealistas - muitas. É o "sonho". Eça, na pele de Fradique, culpava a "bonacheirice" dos portugueses: "Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento, que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem."As palavras de Eça "Disciplina" e "Ordem" são de natureza cívica, não são emanações da autoridade. A "ordem" aqui não tem o sentido salazarista que 40 anos depois vai ter: Eça não está a pedir que nos imponham qualquer "ordem" para corrigir os nossos defeitos, está a enunciar o que espontaneamente nos falta, o que marca o nosso atraso, aquilo de que não somos capazes, pela nossa "relassa fraqueza". E todos os dias precisamos desta crueldade queiroziana em vez da louvação das nossas virtudes "bonacheironas". Também por isso, não há dia em que leia mais uma peripécia portuguesa da culpa, e elas são quase diárias, sem que não me lembre do Fradique "humilhado" por si próprio, por ser tão "bonacheirão" como todos os portugueses e acabar por ser tão complacente como qualquer um. E observar a triste exibição da nossa incapacidade para qualquer "Disciplina" e "Ordem" por causa da nossa "culpada indulgência". Veja-se o que aconteceu com as falésias do Algarve, um remake da ponte de Entre-os-Rios, só que menos espectacular. A falésia da praia Maria Luísa caiu matando várias pessoas. Seguiu-se a visita das Personalidades e a explicação das Entidades, no meio de um cenário de basbaques "populares", a olharem para o local onde pouco antes passeara a morte. Televisões estavam todas e metade dos telejornais ficava garantido pela espectacularidade do cenário, pela confluência de polícias, militares, bombeiros, botes, ambulâncias, gruas e fitas de demarcação. Boa televisão, boas audiências, até que apareça outra tragédia e melhores imagens. Uma pletora de entidades, ministérios, institutos, polícias, autarquias, militares, instituições científicas veio explicar que a culpa era do mar, do vento, da areia e das pedras que não se comportaram como devia ser. E mais, a culpa é da física, da química, da matemática, da estatística, do aquecimento global, das alterações climáticas, da geologia por via dos sismos, do magma profundo. Não é nunca dos homens, nem dos que deviam cuidar, nem dos que não tiveram cuidado. O resultado é sempre o mesmo, nem os que deviam cuidar vão cuidar melhor, nem os que deviam ter cuidado vão passar a tê-lo. Se houvesse "Disciplina" e "Ordem", seria isso a lição que as mortes nos dariam, tarde e a más horas, mas infeliz lição. Assim não se tira lição nenhuma. Uma semana depois de uma azáfama de verificação de falésias, a célebre encarnação do ditado "casa roubada, trancas à porta", chegou-se à conclusão que várias arribas estão exactamente na mesma situação das da praia Maria Luísa, e são consideradas "perigosas". Se não houvesse a regra da "relassa fraqueza", teria que se tirar a conclusão óbvia de que tinha que ter havido incúria, porque a verificação que se fez agora era suposto estar a ser feita de forma regular antes. Foi como as pontes depois do acidente de Entre-os-Rios. Foi-se verificar como estavam várias pontes e estavam mal. Será que tudo foi corrigido depois dos holofotes se terem virado para outra calamidade? Duvido, "a relassa fraqueza (...) estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem". O problema é que nada muda enquanto "em cima" se continuar assim e cá "em baixo", sem exemplos que moldem a consciência cívica, sem responsabilidade assumida, sem culpa identificada, no fundo, sem consequências, pode-se continuar a achar que o "sonho" e a "esperança" impedem as pedras de virem por aí abaixo, como se as palavras bastassem. Triste ilusão que alguém paga sempre. Nas falésias foi uma infeliz família, na comunidade a que chamamos Portugal, somos quase todos, a começar pelos que menos defesas têm, os que são mais pobres, os que pagam a dobrar. É que o optimismo de encomenda não se come. Nem a "bonacheirice". (Versão do Público de 29 de Agosto de 2009.) (url)
© José Pacheco Pereira
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