ABRUPTO

3.8.09


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: A VENATIO LIBRORUM

Este é um livro só para amadores da coisa. A coisa é aquilo a que o autor chama a venatio librorum, a caça aos livros, neste caso os livros quinhentistas e seiscentistas, de que Pina Martins é um praticante exímio tendo conseguido reunir uma preciosa livraria pessoal sem paralelo em Portugal. Estamos a falar de uma caça cara e rara que pode andar por volta das centenas de milhares de euros por volume e muita sorte, muita sorte, sequer em ver tão esguios e fugidios animais a passar pelas mãos de um livreiro, ou pelas páginas de um leilão francês ou inglês.

Pina Martins, o senhor académico mais respeitável que se possa imaginar, que se fotografa no livro de traje académico e segurando um volume ricamente encadernado (e com que volúpia se fala das encadernações...), chega junto aos livros que quer e parece um voyou. Confessa que, num leilão, fez correr que um exemplar que queria arrematar não era perfeito, a ver se não tinha competição e o preço baixava e que hesitou em devolver um livro na biblioteca de Poitiers que lhe fora emprestado com ligeireza e que deveria estar na Reserve precieuse ... e muitos outros truques do ofício. E bateu, metaforicamente claro, em si próprio, quando se ofereceu para avaliar um livro que lhe tinha sido proposto barato e que foi depois tido como raríssimo e centenas de vezes mais caro.

Que faz Pina Martins nestes textos? Primeiro traz um gosto erudito, - a erudição é que é a verdadeira fonte da loucura, - pelos grandes humanistas da Renascença: Erasmo, Pico della Mirandola, Moore, e pelos seus livros, texto e objecto. Depois acrescenta o conhecimento aprofundado da edição renascentista, a começar pelo mestre Aldus Manucio, e a continuar por várias edições cujas datas e locais ele conhece de cor ao ponto de conseguir assim identificar edições que nunca tinham sido recenseadas em qualquer bibliografia, como é o caso de uma edição lisboeta de Garcilaso de Vega.

Neste livro, Pina Martins faz umas pequenas vinhetas à volta de um livro ou um manuscrito, o modo como o procurou, encontrou, comprou, perdeu ou vendeu, sempre num tom a roçar uma mansa loucura agravada pelas idiossincrasias narrativas do autor. Por exemplo, Lisboa é Ulisseia e Paris, Lutécia dos Parísios, e os alfarrabistas (ou melhor os livreiros-antiquários) toda uma fauna bizarra que habita lugares que são identificados ou por arcaísmos ou por latinismos e que tem sempre um "gabinete" obscuro de onde saem preciosidades, ou uma gaveta que se abre magicamente mostrando uma edição aldina. Primeiro estranha-se e depois se entranha, tanto mais que tudo aquilo parece um mundo já perdido pelo tempo, como no relato que tem de várias conversas com o seu amigo e bibliófilo Eugenio Asensio. Imaginem dois senhores de idade, passeando pelo Guincho, passando por várias raparigas "peripatéticas", a discutir Camões , Sá de Miranda e Lope de Vega... Depois Pina Martins fala com os livros e ouve os livros falarem com ele, o que , convenhamos, como eu ainda não o consegui apesar dos meus esforços, me parece um pouco para lá do sério. Por fim, ele também pensa que os livros reconhecem os seus verdadeiros amantes e que regressam sempre aos seus braços, mesmo depois de turbulentas traições, o que não é ciência exacta.

Eu gosto de ler livros como este, embora seja em si mesmo um livro muito especial, onde no meio da sua leitura me pergunto muitas vezes sobre quem é mais louco, quem escreve, ou quem lê tão estranho e extravagante produto.

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© José Pacheco Pereira
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