Há tanta coisa que é preciso "rasgar" na política portuguesa que os exemplos não faltam. Aqui vão algumas sugestões de coisas que é preciso "rasgar" no futuro imediato, quer nas políticas actuais do PS, quer nas políticas passadas do PSD:
- "É preciso "rasgar" a crescente promiscuidade entre o Estado, por via do governo, e os "grandes negócios", uma tendência que cresceu exponencialmente com o último governo e que atingiu um paroxismo com a situação da crise. Esta tendência é especialmente perversa, abrindo caminho não só a uma indevida influência do governo e do partido do governo, como a uma cada vez maior tendência para fugir às regras de transparência da administração pública, e ao escrutínio parlamentar. É igualmente uma receita garantida para o aumento da corrupção. Esta promiscuidade enfraquece a independência da economia privada e fere a autonomia já de si frágil da sociedade civil.
-É preciso "rasgar" o poder crescente dos muitos aprendizes de feiticeiro que gravitam à volta dos gabinetes governamentais, estabelecendo "pontes" pouco conhecidas e escrutinadas quer no mundo dos negócios quer no mundo da "influência" política. A política deve voltar a ter faces conhecidas e que respondam pelo que fazem, o que significava caminharmos na tradição de alguns países em que os decisores políticos vêm do parlamento e dos órgãos dos partidos. É aí que deve haver um esforço de qualificação e não favorecer o crescimento de uma espécie de segunda linha (na realidade a primeira) que existe entre os assessores, empresas de comunicação, os altos quadros das empresas, escritórios de advogados e muitos "intermediários" com acesso fácil à governação.
- É preciso "rasgar" a interferência do Estado, por via do governo, na comunicação social, quer dando verdadeira independência a qualquer instância reguladora, quer diminuindo a tutela do Estado de órgãos de comunicação social. Tal não é possível sem a privatização da RTP e da RDP, em todas as suas componentes de órgão de informação, mantendo-se apenas um "serviço público mínimo", quer de carácter cultural e patrimonial, quer no âmbito de emissões que correspondem a objectivos estratégicos do Estado português, como seja a manutenção de uma área de influência lusófona nos PALOP, ou de integração e ligação nacional das comunidades emigrantes. Também nestes casos os objectivos deste "serviço público mínimo" podem ser contratados às estações privadas ou a entidades que se constituam para o garantir. Sem completa independência dos órgãos de comunicação social de qualquer forma de tutela directa ou indirecta (como aquela que permite a golden share em empresas como a PT).
- É preciso "rasgar" o programa de entrega de computadores "Magalhães". A medida de "um computador por cada criança" é desadequada à idade dos que os recebem, pedagogicamente inútil, mal preparada e com contornos ainda por esclarecer. Para salvar o que ainda pode ser salvo, devia-se favorecer tudo o que seja transformar os "Magalhães" já distribuídos numa consola de jogos, com algum componente pedagógico, que isso sim é adequado à idade, e fazer esforços para um programa "um adolescente - um computador", um objectivo muito mais significativo e mais útil. Não são as crianças que devem ter um computador individual, mas sim os adolescentes e para cima na idade. Para isso é preciso favorecer o acesso à compra de computadores, visto que a "unicidade" do programa "Magalhães" não pode nem deve ser mantida num mercado aberto. Outras medidas que levem ao embaratecimento do acesso à banda larga são muito mais importantes do que o objectivo errado do "Magalhães", próprio de um país do Terceiro Mundo em que as crianças não têm acesso a computadores nem em casa, nem na escola, por regra.
- É preciso "rasgar" a tendência mais recente das Novas Oportunidades de "trabalhar para as estatísticas"e reconduzir o programa para um esforço sério de qualificação das pessoas nos diferentes graus de ensino e aprendizagem. O programa tem méritos, mas tem sido abastardado pela crescente intervenção política do Governo no sentido de fazer incorporar dezenas de milhares de pessoas em pequenos períodos de tempo, de forma quase administrativa, concedendo depois os diplomas, em particular os de nível mais elevado como os do 12.º ano, sem garantir a qualidade da formação. O programa que se destinava a aumentar o nível de qualificação dos portugueses, a continuar assim, terá um impacto muito menor do que o que pressupõem os seus elevados custos, podendo vir a repetir o desperdício do Fundo Social Europeu.
- É preciso "rasgar" o desleixo com a segurançaque se desenvolveu neste último Governo numa combinação de leis penais laxistas, com uma desvalorização dos corpos policiais e sua deslegitimização junto dos portugueses. Tal só se passará no momento em que o Governo tenha, quer na área da administração interna, quer em geral, uma cultura de segurança. Esta implica que se compreenda o que significa, para a sociedade, a crise de segurança e, para os corpos de segurança, a solidariedade com o risco.
- É necessário despolitizar de imediato os serviços de informação, em particular os serviços civis, proceder a uma reavaliação de fundo da sua qualidade e produção e estabelecer uma firewall mais eficaz entre o Governo e os serviços, evitando que mecanismos de dependência funcional se politizem, e garantir que se diminua a excessiva centralização do poder de decisão à volta do gabinete do primeiro-ministro.
- É necessário "rasgar" de forma muito acentuada a subsídio-dependência na área da cultura, remetendo quer para as autarquias a "animação cultural", quer para ministérios próprios (Economia, Comércio e em particular Educação) o financiamento de actividades de "indústria cultural", ou de "formação cultural". Os recursos aí libertados devem ser canalizados para uma política cultural essencialmente patrimonial, destinada a salvaguardar o nosso património, a que apenas chega uma parte muito reduzida dos escassos recursos da cultura.
Estes são apenas alguns exemplos. Há muitos mais.
(Versão do Público de 4 de Julho de 2009.)
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A propósito dos rasganços ("É preciso "rasgar" a crescente promiscuidade entre o Estado, por via do governo, e os "grandes negócios""), não esqueça também de rasgar a permanente (não é crescente porque é de longa data e muitíssimo desenvolvida) promiscuidade entre o Banco de Portugal e a banca comercial pública e privada; a crise só revela um parte dessa promiscuidade (supervisão), mas muito mais haveria a assinalar: concorrência; direitos dos consumidores; e mesmo questões tributárias diversas.