ABRUPTO

20.7.09


NA LUA



Há quarenta anos, o dia 20 de Julho de 1969, está-me inscrito na memória como um dos grandes dias da minha vida, embora tenha sido de noite. Nessa noite estava em casa de duas amigas e colegas minhas da Faculdade de Letras do Porto, supostamente para preparar o exame do dia seguinte da disciplina mais temida do primeiro ano do curso de Filosofia, a Introdução à Filosofia. A disciplina tinha o papel de ser, no primeiro ano, o mecanismo de selecção para os aprendizes de filósofos. Era a mais difícil, a mais abstracta e aquela que mais exigia a capacidade de pensar como filósofo. E era dada pelo professor mais temido da faculdade, Eduardo Abranches Soveral.

Soveral, como era conhecido pelos alunos, era especializado na Fenomenologia, uma área e uma filosofia que tinha vários cultores, como o padre Júlio Fragata, que se tinham formado em Husserl, um dos filósofos mais árduos para quem começava a estudar filosofia. Eduardo Abranches Soveral tinha feito a sua tese sobre o "método fenomenológico" e, como era habitual na época, os professores ensinavam muito em função daquilo que tinha sido a sua tese e pouco se afastavam desse terreno que lhes era familiar. Lembro-me, por exemplo, de um ano inteiro dedicado a Merleau-Ponty, porque a professora tinha feito o seu doutoramento nesse autor. Este tipo de relação entre a tese pessoal e as disciplinas tornava o curso muito errático, e o conhecimento dos grandes autores da filosofia dependia das preferências (e do conhecimento) dos professores, a que se somava o condicionamento político. Na verdade, apesar de haver Husserl, Bergson e Merleau-Ponty, eles estavam desenquadrados de qualquer conhecimento da história da filosofia que parava em Hegel e nem sequer tratava decentemente Kant, já para não falar do facto de se estudarem autores como Husserl sem um conhecimento dos autores que o precediam. Nietzsche, por exemplo, era praticamente ignorado, já para não falar dos proibidos Marx e Sartre. Na Faculdade de Letras do Porto, o mundo da história e da filosofia parava por volta da Revolução Francesa.

Soveral era um caso especial. Ele sabia mesmo filosofia, coisa que muitos dos seus colegas conheciam escassamente e era um professor antipático e intransigente. Acresce que era uma personagem da extrema-direita do regime, fazendo companhia no seu extremismo político a outra personalidade da Universidade do Porto da época, o fascista António José de Brito. Vai fascista sem aspas porque não era o que lhe chamavam, mas o que ele dizia que era. Soveral era monárquico integralista e um opositor de direita do regime do Estado Novo, mas tinha funções de relevo no seu aparelho de propaganda, dirigindo a RTP no Porto até ao 25 de Abril. Foi posteriormente saneado e exilou-se no Brasil.

Dito tudo isto, percebe-se que Soveral, para além de temido como professor, era um dos alvos privilegiados do movimento estudantil. Tive com ele várias altercações, algumas no limite da violência física, mas sempre preferi este tipo de adversários que davam a cara aos temerosos burocratas que actuavam pela calada, como alguns dos meus outros professores que tinham os dois pés bem dentro do regime e um dedinho a acenar a dizer que eram "amigos dos estudantes" nos duros confrontos da época. Muitos anos depois, li com interesse algumas das suas últimas obras filosóficas, incluindo o livro póstumo, e alguns textos autobiográficos, e sem surpresa confirmei o que sempre suspeitava sobre estas vidas perdidas no meio de uma história nem sempre justa para as qualidades dos que ficam do seu lado torto. A seu modo, o odiado Soveral marcou-me mais do que os moles. Até como professor.

Nessa noite de 20 de Julho de 1969, estava muito calor e ainda houve tentativas de "estudar", uma coisa que nunca soube muito bem o que era. Mas quando a televisão da sala, a preto e branco, começou a passar o filme da chegada à Lua, para mim acabou de imediato o "estudo" e mandei o Soveral, a Introdução à Filosofia e a Faculdade de Letras
às malvas. Eu queria era ir para a Lua com aqueles homens e tinha um enorme, isso mesmo enorme, entusiasmo com aquele primeiro momento da "conquista espacial", o nome então dado à coisa. Não dormi um minuto e no dia seguinte lá fiz o exame ainda no meio das crateras e do pó lunar, ou seja. na Lua, na traiçoeira Lua. Não correu muito mal e já tinha visto, claramente visto, o primeiro passo de um caminho que ainda hoje continua.

É verdade que eu já tinha estado na Lua várias vezes. Fui lá com Júlio Verne, com o Tintin, e com muitos dos livros da Colecção Argonauta. Na Lua, em Marte, em Vénus, em Júpiter, em Saturno, os planetas mais na moda, a que se somavam remotos planetas inventados em Antares ou em Aldebaran. Do livro de Júlio Verne lembro-me com horror do cão morto a acompanhar a bala que ia da Terra à Lua e no Tintin da perfeição estética do foguetão, uma encarnação das V2 de Von Braun, e dos tontos manos Dupond e Dupont a saltitar na Lua, e do capitão Archibald Haddock a fazer aquilo que é a sua especialidade, soltar impropérios. Um dia vou aconselhá-lo como santo protector da blogosfera portuguesa, pelo seu catálogo de insultos e impropérios.



E também é verdade que nunca mais saí da Lua, olhando com a mesma intensidade e proximidade do entusiasmo para o Spirit (preso na areia marciana) e a Opportunity em Marte, para a Cassini em Saturno, para a Dawn, que leva dentro o meu nome, para Ceres e Vesta, e para o Hubble revigorado, para os nossos olhos, braços e pernas no cosmos.
Nesse primeiro passo lunar está muito do futuro da humanidade. Como sou uma espécie tardia de malthusiano, penso que precisamos de "conquistar" o nosso espaço mais imediato, Lua e Marte em particular, para aí encontrarmos recursos que na Terra começam a escassear e começarmos a ter sítios para onde ir. Pode parecer ainda muito remoto, mas a humanidade precisa de sair da Terra e ir para outros lados, como fez no século XV, "descobrindo" novos lugares. São muito árduos e muito difíceis, mas não são impossíveis. Também nós temos uma costela de extremófilos e a tecnologia dá-nos condições adaptativas únicas para sobreviver no meio dos desertos marcianos.



Pode ser wishfull thinking, mas a alternativa é pior. Um velho livro da mesma Colecção Argonauta, A Morte na Terra, de um pioneiro francês Rosny-Ainé, escrito em 1911, mostra os últimos sobreviventes de um planeta sem água, assinando com a sua morte o fim da raça humana. Este "cenário", como agora se diz, é, como sabemos, mais provável do que imaginamos. Pode não ser a água, mas alguma coisa acabará por faltar e nessa altura encontrá-la-emos em Marte ou em Encelado ou em Ganimedes. Há quarenta anos, nessa noite de Introdução à Filosofia, dominada pela sombra de Eduardo Abranches Soveral, na improbabilidade disto tudo, eu sabia bem que este era o caminho. Nenhum grande momento na vida de cada um engana ou desengana muito. Acontece, chega e deixa as suas marcas. A preto e branco e com um milionésimo do software que eu tenho neste computador.

(Versão do Público de 18 de Julho de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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