ABRUPTO

14.6.09


EI! O PSD GANHOU AS ELEIÇÕES EUROPEIAS!



(Susan Sontag, On Photography)

E era impossível, não era? Foi mesmo verdade? Não foi o Bloco de Esquerda, o "grande ganhador"? Não foi o PP, que ganha as eleições sempre contra as sondagens, mesmo quando fica em último lugar, atrás do BE e do PCP? Não foi o PS que perdeu para todos, logo há um perdedor e nenhum verdadeiro vencedor? Ei! Cai na real, como dizem os nossos amigos brasileiros, o PSD ganhou de facto as eleições por muito que isso seja surpresa, incomodação, espinho na garganta, sapo a engolir, pesadelo, coisa má. E ele há tanta maneira de diminuir o que aconteceu: ganhou, mas não ganhou. Teve um pobre resultado, teve poucos votos, "o pior resultado de sempre do PSD", teve uma votação pouco diferente da de 2004, ou de Santana Lopes, ou sei lá o quê, mas a verdade é que se repete a dose, a miserável, paupérrima, "pior" dose, afasta Sócrates e o PS e pode governar. Ou seja, impossível não é?

Tanto texto em jornais, tanta afirmação em blogues, tanta arrogância, jactância, certeza, superioridade, tanta "análise" superficial, errada e de má-fé transformada pelo jornalismo de rebanho em verdade revelada, e no fim a "surpresa". Lembro-me de um "jornalista" que dizia que escolher Rangel era um "cartão amarelo" a Manuela Ferreira Leite, explicitando nessa asneira muito do que explicava o "passoscoelhismo" do Diário de Notícias, para quem este último é que era o verdadeiro líder do PSD e não essa mulher ultrapassada, que meia dúzia de votos tinham colocado à frente do PSD, impedindo a modernidade da "fenomenologia", as fotografias de modelo no Facebook e as agências de comunicação de terem a sua votação "natural".



Lembro-me de um jornalista comentador televisivo, tido como de direita, que sempre, sempre, desde que Santana Lopes deixou de ser líder parlamentar, dizia que o PSD (com Rangel) perdia os debates na Assembleia com Sócrates, dizia que cada entrevista com Sócrates era uma grande vitória, enquanto Manuela Ferreira Leite tinha que mudar tudo, "não tinha jeito" e era "mal aconselhada". Lembro-me de um dono de uma empresa de sondagens a dizer que era impossível o PSD ganhar ao PS, porque o PS estava a lutar pelos 40% e o PSD pelos 30%, números que as suas sondagens reiteravam sucessivamente até ao dia das europeias. Lembro-me dos jornais a colocarem a líder do PSD para baixo ao mais pequeno pretexto, porque cometia gaffes, não ia a comícios, não contratava agências de publicidade, não lia do teleponto e tinha "tabus", ou seja, não dizia as coisas quando eles achavam que deviam ser ditas. Lembro-me do clamor quanto à escolha tardia do candidato, garantia da derrota, e outros clamores que, de novo, o jornalismo de rebanho tornava em evidências onde ninguém parava para pensar, escutar e olhar, só repetia.







Lembro-me de tanta lama, às vezes quase insulto, contra Manuela Ferreira Leite e mesmo contra Rangel, o que era pior que Marcelo (houve um abaixo-assinado de meia dúzia na Internet promovido a grande movimento pelo Diário de Notícias, lembram-se...), que era pior que Marques Mendes, etc., etc., tanto atestado de incompetência, de "perdedor" absoluto, de incapacidade "mediática" que, a dois meses de eleições, colocar sequer a hipótese de vitória era considerado cegueira do pior. O mais interessante era ver os que estavam completamente convencidos de que o PSD nunca ganharia as eleições, e desejando, por pura táctica pessoal que as perdesse, a exigir que as ganhasse, num exercício de má-fé e hipocrisia que acabou por se tornar tão explícito como contraproducente.

O ambiente era tão hostil, tão hostil, que de facto deu à vitória um significado interior, para o partido, e para o país, muito difícil de tragar, quer pelos adversários internos de Manuela Ferreira Leite, quer para o PS de José Sócrates. A vitória marca um antes e um depois, e isso mostra que já não se pode pensar as coisas como se pensavam antes e muita táctica, principalmente no PS e no interior do PSD, tornou-se poeira de um dia para o outro. Um milhão de eleitores conseguiram esse resultado e veio no momento certo.

O caminho agora está aberto, mas permanece muito difícil. A natureza da fragmentação do PSD, assente em interesses de poder interno, pouco reflecte a realidade nacional e pouco se move por ela. Para muitos profissionais do aparelho partidário, é mais importante manter o seu próprio poder interno do que ganhar as eleições ao PS e dar um novo governo ao país. Vejo muita gente a tomar por adquirido que o "cheiro do poder" chega para "unir" o PSD. Terá sido assim no passado, não o é certamente no presente, onde é mais relevante controlar as listas de deputados e os equilíbrios de poder entre distritais e dirigentes que se comportam como caciques, do que mudar o país. O grau de degradação da vida interna dos partidos é tal que é mais importante manter os poderes que existem do que correr os riscos da mudança que podem desequilibrar o que foi laboriosamente adquirido. Não tenho dúvidas de que, se não fosse esta vitória eleitoral, a margem de manobra de Manuela Ferreira Leite seria quase nula, e mesmo assim terá sempre mais dificuldades dentro do PSD do que fora, no país.

O que Manuela Ferreira Leite hoje precisa para competir de forma mais perfeita com o PS é restituir a honra governativa perdida do PSD, um partido que deu ao país governos como os da AD e os de Cavaco Silva, mas que para muitos portugueses tem essa reputação manchada. Para isso, precisa da maior liberdade, porque tem autoridade política que veio de fora, do voto, e precisa de a usar rapidamente nas opções mais difíceis, antes que o tempo exerça a sua usura. Precisa de escolher listas de deputados qualificadas, constituindo equipas com gente velha e nova, mas que seja reconhecida pelo país, pelos grupos profissionais, pelas elites e pelo homem comum, pelos que precisam de melhor política, como dedicados, capazes, impolutos e estando ali pelo interesse público.

Como o está Manuela Ferreira Leite, a quem ninguém pode acusar de usar a política para fazer uma carreira ou actuar por interesse próprio. Ela sabe o que quer, tem neste momento um programa alternativo ao do PS, tem a legitimidade de uma vitória que muitos consideravam impossível, agora tem que usar a sua autoridade para fazer o que falta. Muito trabalho tem vindo a ser feito com discrição para materializar um programa de governo e muita gente capaz pode ser mobilizada. Não é fácil, num momento em que o Governo e os seus aliados nos grandes interesses retaliam contra quem comete o crime de pensar que é preciso mudar. Mas é essa a competição que pode consolidar a mudança de Junho.

Há exactamente um ano, em 7 de Junho de 2008, tinha Manuela Ferreira Leite acabado de ganhar e antes da "crise", escrevi no Público o seguinte:
"O eleitor de 2009 está assustado, triste com a sua vida, não acredita em quase nada, mas espera que alguma solidez, alguma seriedade, alguma credibilidade no governo, lhe permitam atravessar a crise sem grandes estragos, sem perder muito e talvez, talvez, passada a tempestade, possa de novo melhorar alguma coisa. É um programa mínimo para tempos difíceis, mas é um programa racional para os eleitores do 'centro', que é onde a maioria dos eleitores está. O eleitor de 2009 não vai votar em grandes questões programáticas, nem em listas de medidas por muito atractivas que elas sejam, nem em grandes rupturas.

Só trocará o PS pelo PSD se perceber que ganha alguma coisa, mas fá-lo-á se a mudança lhe parecer poder ser feita com confiança e segurança. Se não for assim, em tempos de crise, vai sempre preferir o 'diabo que conhece'. Nessa mudança, valorizará o que de mais raro existe na política, e procurará naturalmente o contrário do que já tem hoje, procurará mais sobriedade, mais solidez, menos espectáculo, menos mentiras, mais verdade. É isso que significa a credibilidade, palavra com muito mais conteúdo do que parece e que muda muito mais coisas do que se imagina, mas que tem o inconveniente de estar escassamente distribuída. Ou se tem ou não se tem. Vai querer gente muito sólida no governo, não vai querer nem demagogos, nem mentirosos."
Um ano depois nada tenho a acrescentar.

(Versão do Público, 13 de Junho de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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