ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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27.4.09
Este artigo será publicado no dia 25 de Abril, trinta e cinco anos depois da revolução que moldou o Portugal contemporâneo. Como existem "donos" putativos do 25 de Abril, na esquerda que desfila na chamada "manifestação popular" e em particular o PCP, é muito comum uma espécie de discurso nostálgico sobre "cumprir Abril". Para esse discurso não dou nada porque "Abril" já está bem "cumprido": temos liberdade política, democracia, descolonizámos e, mesmo no "D" mais difícil, o do "desenvolvimento", Portugal está muito diferente do país herdado de Salazar e Caetano. Não é a altíssima mortalidade infantil (ver gráfico), o analfabetismo, a pobreza e a miséria, que faziam centenas de milhares emigrarem com todos os riscos, um país onde em muito do seu território não havia luz, nem água canalizada, nem saneamento básico, que caracterizam o Portugal de hoje, trinta e cinco anos depois. Continuamos com muitos problemas nesse "D", e estamos a agravar esses problemas, mas, nestes trinta e cinco anos, fizemos muito. O país estava muito estragado em 24 de Abril, e só idealisticamente se podia esperar um milagre de "Abril", mas, mesmo se Portugal continua muito estragado, é um "estragado" com aspectos diferentes. Alguns são os mesmos, mas outros são diferentes. O"cumprir Abril" de que se fala na "manifestação popular" são mais saudades do PREC do que outra coisa, um discurso nostálgico sobre o tempo em que PCP e várias esquerdas mais ou menos extremas dominavam parte do país, e quase toda a retórica oficial. A minha preocupação não é com essas nostalgias, é com riscos novos e reais aos fundamentos da liberdade e da democracia, que podem dar origem a uma deriva totalitária muito mais complexa e eficaz no seu liberticídio do que a de antes do 25 de Abril. Previno desde já que não estou a pensar em qualquer golpe militar. As forças armadas portuguesas são um pilar da democracia e não é plausível que venham agora a fazer golpes à América Latina. Nem penso também que este Governo e os seus governantes mais ou menos absolutos, sejam quaisquer candidatos a ditadores. Sócrates tem culpas na degradação da democracia, mas não o vejo como qualquer candidato a ditador e acho que só com perda do sentido das proporções se pode apresentá-lo assim. Já estou menos certo, embora com um grau pequeno de probabilidade, que os demagogos populistas que por aí há, e há vários, não tenham vontade e condições para se transformarem em novos Chávez, plebiscitados pelo voto popular e usando esse voto contra o estado de direito. Embora pense que o risco dessa demagogia autoritária é maior do que um quartelazo, em períodos de crise económica e de populismo justicialista contra os políticos, partidos e aquilo que chamam o "sistema", que é quase sempre a democracia, também não me parece que seja para amanhã. Dito isto, o que me preocupa não é nenhum dos cenários clássicos das ditaduras do passado, mas sim a deriva autoritária no presente, porque, pela sua inconsciência, desleixo e, nalguns casos, ideias muito erradas sobre a democracia, não possam estar a preparar um mundo que será o ideal para exercer o poder como "mando". Se aparecer alguém que queira "mandar" mais do que deve tem à sua disposição muitos instrumentos que, em plena democracia, lhes estamos a preparar. Primeiro, o clima, o ar rarefeito para a democracia, a indiferença em relação à vida saudável de um país democrático, vinda de governantes que são muito insensíveis aos valores humanistas e cívicos da liberdade e que estão mais disponíveis a deslumbramentos tecnológicos do que à respiração da liberdade. O yuppismo de uma certa geração da política portuguesa está bem representado no actual primeiro-ministro. Aí este governo e este PS (nalguns casos com a ajuda do PSD e quase sempre com a instigação permanente do Bloco de Esquerda) tem actuado sem consideração pelos direitos individuais e pela pluralidade, diferença e confronto que caracterizam a sociedade democrática. A substituição do debate pelo marketing, a cedência à espectacularização da vida política, a substituição do conteúdo pela forma, é um caldo de cultura para uma despolitização anómica da democracia, que propicia o adormecimento cívico. Só num país adormecido é que se acha não só natural como positivo que o primeiro-ministro substitua nas entrevistas as respostas por "mensagens" repetidas ad nauseam e claras intimidações aos jornalistas (e convenientes processos em série que podem não ser vitoriosos mas complicam e muito a vida às pessoas visadas) para não tratarem dos temas proibidos, a começar pelo Freeport. O mesmo caso Freeport que permitiu a Mário Soares fazer um apelo à censura, sem qualquer sobressalto cívico de ninguém, ou a um secretário de estado invectivar a Ordem dos Notários, por tornar público o que é público. E exemplos não faltam. Mas não é apenas a conjuntura, muito dependente das vicissitudes do Primeiro-ministro, é também a estrutura de um estado que está a coleccionar leis e práticas muito pouco democráticas, com pretexto na segurança, no combate à fuga ao fisco, no reforço unilateral dos direitos do estado em detrimento dos direitos dos cidadãos, na rarefacção dos lugares onde o indivíduo é livre sem ser controlado electronicamente em todos os seus actos. Eu nem quero imaginar o que pode fazer uma variante de uma PIDE moderna com os instrumentos e as bases de dados a que pode aceder no estado, desde a do ADN, à da Via Verde, ao Cartão do Cidadão e os seus "números" interligados, com as escutas e procuras na Internet e nos telemóveis, às câmaras de videovigilância que proliferam por todo o lado, etc., etc. De manhã à noite, todo o meu percurso, o dinheiro que gasto, os livros que compro, onde almoço e com quantas pessoas, se passo pela Rua do Carmo, se entro no Sheraton ou se vou a um bar de alterne, que palavras procuro no Google, os bilhetes de avião ou comboio, tudo, tudo, tudo pode hoje ser procurado, sistematizado, devassado. Com o modo como o PS quer acabar com o sigilo bancário, com o crescente fim do ónus da prova pelo estado no fisco e agora em tudo o resto, estamos a construir uma sociedade vigiada e controlada, sempre pelas melhores e mais "eficazes" razões, mas que é um maná para quem começar a abusar da lei. E mais: se houver uma deriva totalitária ela começará por aí, pela utilização destes novos instrumentos instalados por governantes yuppies sem respeito pelas liberdades, e para quem a palavra "indivíduo" é um anátema e o estado um dogma racional. Todas as comissões reguladoras, todas as "entidades", todas as múltiplas instâncias que nos deviam "proteger" da violação dos nossos dados, defendendo a nossa privacidade, acabarão por ser controladas pelo melhor método, pela escolha das pessoas certas para os lugares certos, pela crescente aprovação de leis que as tornam ineficazes, pela redução ao quixotesco, arcaico e pouco moderno dessas preocupações antiquadas com a liberdade contra a eficácia e comodismo das novas tecnologias. Neste 25 de Abril preocupa-me estarmos a construir a perfeita sociedade totalitária em plena democracia. A preparar o órgão, a polir a função. Só falta haver alguém que o queira usar, que tem tudo preparado. Por nós. (Versão do Público, 25 de Abril de 2009.) (url)
© José Pacheco Pereira
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