ABRUPTO

30.4.09


*

Está em linha numa publicação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o debate sobre O Imaginário Europeu A Partir Da Controvérsia Dos Cartoons: Desenhando Civilizações?, em que participei (Coimbra, 2006) juntamente com Maria Irene Ramalho, Adel Sidarus, Mostafa Zekri, Isabel Allegro Magalhães, Boaventura De Sousa Santos, Tina Gudrun Jensen, Abdoolkarim Vakil e S. Sayyid. Abri a minha intervenção fazendo referência ao pedido que me foi feito para não utilizar as reproduções dos cartoons no debate, porque isso poderia ofender os muçulmanos presentes:
E gostaria de colocar, desde início, o problema como penso que se deve colocar, enquanto um dilema: se eu quiser, no conteúdo da minha intervenção, usar reproduções das caricaturas, o que é que se deve fazer? Ou seja, eu tenciono analisar a estrutura narrativa das caricaturas para mostrar, em relação àquelas que foram mais litigiosas, que elas se inserem inteiramente dentro da estrutura narrativa dos cartoons publicados sobre todas as matérias no Ocidente e que, como não tenho outro sistema de valores para os analisar, a não ser o sistema de valores que remete para os critérios da sua publicação, posso, ou devo, apresentar a reprodução das caricaturas?

Nós estamos a discutir um objecto sobre o qual de imediato se coloca, em Coimbra no ano de 2006, num país democrático, a questão de se saber se eu devo ou não apresentar, porque isto pode eventualmente ferir a sensibilidade e a susceptibilidade de muçulmanos que se encontrem ou participem neste debate. E esta é, logo de início, uma questão crucial. Logo de início!

Por que é que eu – que vou falar da estrutura narrativa dos desenhos, compará los com outros desenhos feitos por cartoonistas portugueses e mostrar que existe uma comunidade de temas, de percepção, de construção estética e satírica desse objecto – me tenho que colocar a mim próprio o problema de não os poder mostrar? Ou de não os dever mostrar? Ou do facto de os mostrar poder ser entendido como provocação? E ao mesmo tempo eu pergunto a mim próprio: “Se eu começo a pensar assim, efectivamente a minha liberdade já não é nenhuma”.

E, para mim, esta é a questão central porque está inserida num sistema de valores que tem a ver com a política e com o espaço público. Eu não entendo que esse sistema de valores nasça da natureza, nem da sociedade, nem sequer apenas da cultura ou da religião stricto sensu. Nasce de escolhas: cada um de nós constrói o seu sistema político, o seu espaço público, a partir de um conjunto de escolhas. Ora este é o sistema de escolhas que nós até hoje tivemos no mundo ocidental – e não só, porque de alguma maneira até esta crise nós pensávamos que o sistema de escolhas que era dominante no mundo ocidental tinha toda a vantagem em ser universalizado. O que é o direito internacional, que é sistematicamente invocado à volta de todos estes problemas, se não uma projecção de um sistema de valores ocidental? A questão dos direitos humanos: o que é ela se não uma projecção do sistema de valores ocidental? Não há tradição de pensamento sobre os direitos humanos, a não ser muito fragmentária, fora do sistema de valores ocidental.

(*) Agradeço a José Albuquerque os elementos que me forneceu sobre a mercearia Abastecedora da Memória, na Calçada da Memória, junto da Rua do Jardim Botânico, pertença de seu pai, merceeiro em Lisboa há mais de sessenta anos. Que o toldo que aqui uso fique como homenagem a esse trabalho de uma vida inteira.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]