ABRUPTO

11.1.09


A DECADÊNCIA DO MUNDO DOS SELOS

Poucas coisas dizem melhor da decadência do mundo dos selos do que o facto de as guerras já não passarem por eles como no passado. Não passando as guerras, passa pouca história e pouca política e os selos tendem a tornar-se papel pintado produzido apenas para os filatelistas coleccionarem. Estão mortos.



Eu explico-me: quando os selos eram um sinal e um instrumento de soberania, a emissão de selos era um elemento fundamental para mostrar um qualquer poder ou uma qualquer resistência. Qualquer país corria a emitir selos no próprio dia em que colocava as botas dos seus soldados num hectare alheio. É por isso que a filatelia entre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda é tão rica. Há selos das aldeias "alemãs" da Bélgica, Eupen e Malmedy, da Alsácia e da Lorena, dos mil e um enclaves e trocas de territórios da Roménia, da Polónia, da Rússia, mais os da Revolução e da guerra civil, há as sobrecargas vitoriosas sobre os selos coloniais alemães, do Sudoeste Africano às Marianas, há a revanche alemã com os selos da ocupação das ilhas do canal da Mancha, ou dos italianos na Riviera francesa, as ilhas do Adriático e do mar Egeu umas vezes albanesas e gregas e turcas e outras vezes italianas e turcas, há selos de Danzig, e, no fim da guerra, das zonas de ocupação francesa na Renânia-Vestfália e correios "alemães" dos russos, etc., etc. Os impérios a esboroarem-se dão também uma filatelia abundante, como os correios estrangeiros no Império Otomano, na China, em Marrocos, os selos do Levante, ingleses, franceses, alemães e todo o mundo colonial português, espanhol, das Filipinas, Porto Rico até ao Ifni e à Guiné Equatorial, o pomposo império colonial francês, e o poderoso inglês, das Falklands ao "condomínio" das Novas Hébridas.



Há selos por todo o lado e toda a história do século XIX e XX. Até Portugal, que em 1916 ocupou uns metros quadrados de território alemão do Kionga, mandou sobrecarregar quatro selos de D. Carlos (ainda se usavam os selos da Monarquia) com um claro e soberano "Quionga". O mesmo mandaram fazer, neste caso uma emissão de selos novos, os monárquicos que tomaram o Porto e proclamaram a Monarquia do Norte em 1919, com o azar de que no mesmo dia em que os selos saíram os republicanos tomaram a cidade acabando com a "monarquia".



Este uso dos selos mudou muito depois da Segunda Guerra Mundial, embora até aos dias de hoje os selos continuem a ser usados como arma política e afirmação de soberania, em conflitos como os dos Balcãs, mas já bem longe dos tempos áureos da filatelia clássica. Uma parte da crise do mundo dos selos tem a ver com novas tecnologias que os tornam dispensáveis, ou com uma entidade que, fora do coleccionismo, é cada vez mais obsoleta com as etiquetas postais autocolantes, o bulk mail apenas certificado por carimbos, ou os selos autoproduzidos no computador e numa impressora com valor legal pelo seu pagamento na Internet, podendo ter os símbolos que se quiser (não é bem assim, mas quase), a começar pela foto do próprio (sim, amigos do PS, podem em certos países emitir selos verdadeiros com o retrato do vosso engenheiro) ou da árvore de Natal com as prendas, ou do bebé recém-nascido.


Mas a crise dos selos tem muito a ver com a mudança do carácter dos conflitos contemporâneos, com o facto de deixar de haver "guerras" e declarações de guerra e todos os conflitos se passarem num limbo político e legal, entre o "olimpianismo" das organizações internacionais (incluindo a União Postal Universal que não sanciona selos que não sejam emitidos por autoridades postais reconhecidas, logo afasta dos catálogos "selos" emitidos em situações conflituais e revolucionárias) e a realidade cruel das guerras sem direito, sem pai nem mãe, logo sem fim. Nunca se ganham, nunca se perdem, sempre continuam.



Veja-se como seria nos tempos ideais dos selos o conflito actual na faixa de Gaza. No passado, os selos retratavam bem o carácter conflitual daquela parte do mundo e mesmo só os selos reconhecidos pela UPU mostram o complexo da situação no terreno. Na Palestina, actuaram correios franceses, austríacos, russos, alemães e ingleses com selos próprios para suprirem os pouco eficazes serviços otomanos. Depois os ingleses ocuparam a Palestina e, com o início do Mandato, publicaram selos com a designação "Palestina" até 1942. No tumulto do fim do Mandato e da criação do estado de Israel, circulavam selos provisórios judeus, e egípcios e jordanos com sobrecargas, até que Israel passou a ter emissões regulares e mais tarde a Autoridade Palestiniana no âmbito dos Acordos de Oslo.



Como seria hoje em Gaza? Gaza é administrada por um movimento fundamentalista, o Hamas, e tem um governo que não é reconhecido pela Autoridade Palestiniana, logo pela comunidade internacional, nem pela UPU. O território de Gaza encontra-se actualmente ocupado pelo exército israelita. Quando os selos significavam soberania, era natural que houvesse selos de Israel (há), da Autoridade Palestiniana (há), selos da ocupação de Gaza (muito provavelmente selos de Israel com carimbo Gaza ou da Autoridade Palestiniana com sobrecarga israelita) e selos emitidos pelo Hamas para os correios internos em Gaza e para a correspondência internacional com os países que reconhecem a autoridade do Hamas em Gaza, em particular o Irão.

Claro que esta complexidade de situações é hoje teórica e não se traduz em selos, como seria normal no passado. Poder-se-ia acrescentar que os serviços postais da Autoridade Palestiniana dependem muito de Israel e do Egipto e que não há verdadeiramente serviços de correio nos territórios palestinanos e muito menos em Gaza. Não é suposto que os israelitas considerem a sua ocupação circunstancial de Gaza uma verdadeira ocupação, mas sim uma incursão militar, e a guerra de que falamos, bem real no terreno, é uma das não-guerras que abundam no mundo contemporâneo. Por isso, sendo possível uma história postal do conflito - haverá sempre um ou outro sobrescrito interessante em termos de história postal -, o mundo nesta zona "quente" já não é de especial interesse filatélico. O e-mail substituiu o correio e, para a correspondência que verdadeiramente conta, são as empresas internacionais como o DHL que funcionam, não as caóticas estações de correios do Médio oriente.

Não há nenhuma razão para ter saudades do passado naquela região, bem igual ao presente, mas pode-se sempre emitir um desejo filatélico: que haja apenas dois tipos de selos, os de Israel e os da Palestina, dois países soberanos, internacionalmente reconhecidos e respeitando a mútua soberania. Por isso prescindia da complexidade da filatelia clássica, mas com ela gostava também que desaparecesse o mundo ainda mais caótico das guerras não-guerras, que criaram um fosso entre a realidade política e a realidade do direito e dos direitos humanos. Apesar de tudo, os selos como instrumentos de soberania sempre eram mais "transparentes", como agora se diz.

(Versão do Público de 10 de Janeiro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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