ABRUPTO

1.12.08


ÉTICA POLÍTICA EM TEMPOS DE CRISE



Em tempos de crise económica, as malfeitorias económicas dos ricos e poderosos, sejam apenas expedientes para enriquecer nas franjas da legalidade, sejam fraudes e crimes, são particularmente explosivas em termos sociais. Então, se se tratar de políticos, a tolerância fica abaixo de zero e o clamor pela justiça assume tons de vingança social. Não foi a ambição e ganância desmedida dos ricos e poderosos que gerou a crise económica que explica por que razão a minha pensão está a baixar, as minhas poupanças estão em risco e os meus filhos estão desempregados? Num certo sentido, a resposta é sim e compreende-se o apertar ainda mais da malha persecutória e justicialista sobre qualquer desmando real ou imaginário. Não é um ambiente saudável, que transborda em palavras violentas em qualquer fórum da rádio ou da televisão aberto aos ouvintes ou telespectadores. É um ambiente propício a muitas injustiças, com julgamentos em praça pública sem defesa, com culpa formada mais pela condição económica e social do réu do que pela sua culpa real ou imaginária.

Dito isto, nem por isso deixa de haver um outro lado para a mesma questão: é natural que, em momentos de dificuldades e empobrecimento colectivo, se seja mais severo com abusos de poder, actos de ganância em proveito próprio e, no limite, fraudes e crimes. As questões de ética política tornam de novo a colocar-se no centro do debate e as dificuldades de encontrar critérios seguros no terreno movediço da percepção pública do que se pode ou não pode fazer, e da lei, são evidentes. O debate actual sobre se Dias Loureiro devia ou não deixar o Conselho de Estado, dada a sua situação controversa no caso do BPN, é um exemplo disso.

A tese dominante no PS, implícita no PSD, aplicada pela Comissão de Ética da Assembleia da República, foi expressa por Pina Moura, quando questionado sobre se a sua manutenção como deputado não era inaceitável, dado o facto de ser responsável pela Iberdrola, empresa espanhola que negociava com o governo português em áreas em que o deputado Pina Moura exercia o seu poder de vigilância e controlo parlamentar. Nessa altura, Pina Moura disse que, para ele, a "ética republicana era a lei" e, como nada havia de ilegal na sua conduta que implicasse uma incompatibilidade formal, não tinha que deixar o seu lugar na Assembleia. Podia-se argumentar que, não sendo ilegal, era politicamente imoral, que Pina Moura se defendia com a identidade absoluta da "lei" com a "ética". A atitude do PS e do PSD nestas circunstâncias tem sido, com muita dificuldade e muita relutância, acrescentar novos itens à "lei", sempre que o escândalo público obrigava os partidos a tornarem "ilegal" mais um procedimento que "na véspera" a "ética republicana" de Pina Moura permitia. É uma atitude semelhante àquela que António Costa defendeu na Quadratura do Círculo, ao insistir na necessidade de se definirem regras claras, em particular quando há dúvidas sobre o que fazer quando alguém é constituído arguido ou acusado. A posição de Costa é alargar o âmbito da "lei", de modo a cobrir actos ou situações que entretanto se considerem eticamente reprováveis.

Discordei de António Costa e discordo de uma aproximação normativa do problema da ética política, que penso ser impossível de verter em código de conduta por muito complexo e detalhado que seja. Sigo aqui a posição de Marques Mendes e vou até mais longe naquilo que ela tinha de meritório. Na verdade, a posição original de Marques Mendes foi grosseiramente deturpada pela imprensa e pelos seus adversários no PS e no PSD, que repetiam vezes sem conta, como aliás é habitual, na especial perseverança no erro para não perder a face em que a comunicação social é exímia, aquilo que ele nunca dissera. A posição de Marques Mendes foi reduzida ao simplismo de "Estás arguido, logo não podes ser candidato do PSD", quando Marques Mendes tinha tido especial cuidado em dizer que o último elemento decisório não era a situação judicial de alguém, mas sim um julgamento político sobre o que motivava essa situação e o escândalo público que ela suscitava. Na verdade, a posição de Marques Mendes continha dois elementos fundamentais: um, não entregava ao sistema judicial a decisão política de candidatar ou não alguém, retirar a confiança política ou não uma pessoa; segundo, exigia um julgamento político que implicava responsabilidade do julgador.

Este último factor é para mim fundamental. Face a situações ambíguas, face a suspeitas de comportamento impróprios, face a situações legais mas eticamente inadmissíveis, a decisão política contém certamente elementos de subjectividade e discricionariedade, mas, em última instância, essa decisão incorpora uma avaliação no foro próprio da política, irredutível a tudo o resto, cuja responsabilidade podia ser medida e pedida a posteriori e julgada pela opinião pública e pelos eleitores. Um dirigente político pode e deve defender alguém, mesmo que julgado e condenado, desde que tenha a convicção de estar a ser perseguido injustamente, seja por um governo, seja por falsas acusações, seja por qualquer justicialista de qualquer ramo do aparelho judicial. Esta possibilidade é um factor de liberdade política em democracia, e é a tradição do Acuso de Zola. Não é líquido que na sociedade portuguesa não haja ou possa haver situações como esta.

Mas esta possibilidade está nos limites da responsabilidade política; o que é mais comum, e infelizmente cada vez mais comum, é saber o que se deve fazer, face ao mais subjectivo e movediço terreno dos comportamentos que, não sendo ilegais, não sendo inclusive do domínio da justiça, são susceptíveis de serem condenados no plano da ética política e causam escândalo público. Sou sensível aos perigos da subjectividade e à possibilidade de vinganças e ajustes de contas políticos, mas também aí prefiro uma responsabilidade dos líderes partidários por aplicarem decisões discricionárias do que qualquer código de conduta normativo.
Nesse julgamento têm de ser ponderados muitos factores que não podem ser vertidos em qualquer sistema de normas, o primeiro dos quais é a matéria que causa escândalo público, a sua relação com a actividade política, e com os crimes de colarinho branco que estão sempre próximos do poder político, o modo como afronta não o participante zangado dos fóruns, mas a opinião pública moderada e conhecedora.

Era o caso, para mim paradigmático, de Pina Moura e de alguns deputados do PSD que eram advogados em causas que tratavam como parlamentares e que, não estando a cometer nenhuma ilegalidade, estavam sem dúvida a violar um princípio de incompatibilidade pela confusão entre os interesses próprios profissionais e a causa pública que deviam servir como deputados.

Um dos défices mais graves da vida política portuguesa é exactamente esta omissão das lideranças partidárias de assumirem as suas responsabilidades na apreciação dos comportamentos eticamente reprováveis dos membros dos seus partidos. Não precisam de o fazer na praça pública, não precisam de o fazer a reboque de decisões judiciais, ou pelo clamor vingativo do escândalo público, mas tem que haver uma "linha vermelha" própria que não seja indiferente a um julgamento ético sobre o que acontece infelizmente quase todos os dias. É uma grande e difícil responsabilidade, mas deve vir com a liderança e ónus do poder. E, se fosse aplicada com mais rigor e sensibilidade, traria mais credibilidade para a vida política que tanta falta tem de merecer respeito pelo cidadão comum. Em tempos de crise, então ainda é mais crucial essa respiração ética.

(Versão do Público de 29 de Novembro de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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