ABRUPTO

29.12.08


SALAZAROFILIA / SALAZAROFOBIA



Na semana do Natal, na secção de História de Portugal da livraria da FNAC do Colombo, havia 38 livros expostos. Desses 38, 12 tinham Salazar na capa, em desenho, em fotografia ou no título. Se somarmos a esses volumes outros livros que são sobre o período do Estado Novo e sobre as suas instituições simbólicas, como a Mocidade Portuguesa, quase 50 por cento dos livros sobre História de Portugal que competem no precioso espaço de uma banca natalícia são sobre os 48 anos de ditadura. E, na sua maioria, já não são sobre a oposição à ditadura, mas sobre a ditadura, o ditador Salazar (Marcelo Caetano também está representado, mas com menos sucesso) e as suas instituições. Uma parte destes livros, se bem que pequena, é puramente apologética e uma parte maior é nostálgica, mesmo quando crítica. Na secção dos DVD também Salazar está representado, na sua vera efígie a negro, numa série documental. Na realidade, como todos os editores sabem, Salazar vende bem e, em tempos de crise, venderá ainda melhor.

Nas gerações que conheceram o regime do Estado Novo, a salazarofobia é mais forte do que a salazarofilia, pelo menos nas classes "altas", até porque é esse o discurso politicamente correcto que legitima a vida pública depois do 25 de Abril e porque o turnover geracional faz com que, na sua maioria, esses grupos sociais sejam constituídos pelos ex-jovens dos anos 60, a geração menos atingida pela doutrinação salazarista e mais insubordinada ao sistema de valores que a alimentava. Os jovens dos anos 30 e 40, a lei da morte foi-lhes diminuindo o peso na vida pública e na opinião. Com eles foi a salazarofilia de regime, parente pobre e menos coreográfico dos regimes totalitários de Itália e Alemanha, que nunca ultrapassou os anos 30 e deixou, depois do fim da guerra, instituições moribundas e anacrónicas como a Legião Portuguesa ou a Mocidade Portuguesa. A salazarofilia dos anos 50 era já mais da guerra fria do que a da "guerra civil europeia" dos anos 30 e, por isso, mais compatível com a democracia e com a "livre Inglaterra". A guerra colonial resumiu e deu algum alento a todas as salazarofilias anteriores, mas os tempos já estavam a mudar e, mesmo que Salazar odiasse a modernidade, o mundo estava já mais moderno, mais solto, menos estável, mesmo por detrás da formidável barreira da censura.

Por outro lado, fora das elites, tem crescido depois do 25 de Abril uma salazarofilia popular e não é só na figura emblemática do motorista de táxi que brada contra o mundo e que funciona, para quem não conhece o povo, como a vox populi. Esta salazarofilia é em grande parte uma reacção antipolítica, demagógica e justicialista relativamente a muitos aspectos da democracia política, aos partidos, aos "políticos", à corrupção existente e imaginada, à ineficácia e custo da democracia. Esta salazarofilia comunica à esquerda com o populismo anti-sistema, forte nos simpatizantes comunistas e na parte do PS que é popular e urbana e de "baixo". A comunicação social, pelo modo cínico como relata a política, sendo ela própria salazarofóbica, porque alinhada à esquerda, alimenta a salazarofilia popular com muita eficácia e não é só no 24 Horas, esse híbrido esquerda-direita que enche os olhos dos leitores de primeiras páginas nas bancas.
Um bom exemplo é este comentário deixado no Público sobre o que escrevi.

Charlatão! Por Anónimo - Lisboa

Ó cahralatãozinho: - então tem crescido uma salazarofilia depois do 25 de Abril? Não vês, ó charlatão, que é exactamente o contrário? Não vês que os charlatães, como tu, têm cultivado no povo uma salazaroFOBIA, charlatão? E agora o povo, já desenganado de vocês, aldrabões e charlatães, espoliado e na miséria, o que precisa mesmo é encontrar uma solução para as suas vidas? As vidas de cada um de nós estão muito difíceis e vocês, aldrabões e charlatães, têm também muita culpa nisso. CHARLATÃO! E publiquem este comentário, se forem gente honesta,... e tiverem valentia para isso.

Nos mais novos, com uma presença forte nos blogues, o que aflige na salazarofilia intelectual que por lá emerge é o grande peso da ignorância tomada como sendo a ausência de complexos sobre o passado e antiesquerdismo. Na verdade, é mais ignorância do que ideologia, a que depois o estilo de boutade e de comparação absurda para épater le bourgeois dá circulação. Um dia se fará uma antologia das mais estapafúrdias comparações dos blogues e nelas a salazarofilia chique terá o seu papel.



Relatório da Censura

Mas a grande fonte da salazarofilia nunca pronuncia o nome de Salazar e nem sequer tem consciência de até que ponto vem dele e dos 48 anos do Estado Novo. Essa fonte é a desconfiança da política, a obsessão do consenso, o nojo pelos "partidos" enquanto "partes", a vontade de um mundo higiénico em que todos se entendem, todos são "construtivos", todos fogem da polémica, todos pretendem passar pelos pingos da chuva democrática, para não aparecerem molhados e menores junto da multidão que louva os que habitualmente nunca sujam as mãos em nada. Ser polémico em Portugal é um óbice sério a singrar na vida, como essa frase exclusora inventada no interior dos partidos traduz: "Ele não serve porque tem anticorpos." Na verdade, como no tempo de Salazar, o pano de fundo desta subserviência instituída em "consenso" é a escassez de bens, recursos e lugares e a enorme dificuldade em se ser independente em primeiro lugar do Estado omnipresente, e depois dos partidos, dos grupos e das coteries em segundo, terceiro, quarto e enésimo lugar. É por isso que ainda somos mais salazaristas do que democráticos, no fundo da nossa maneira de ser em público. É por isso que esta salazarofilia involuntária, mas real, atravessa a nossa vida pública de cima abaixo, da esquerda para a direita e vice-versa, enche a política, a comunicação social, o establishment literário e cultural.


Precisávamos de mais liberdade, de muito mais crítica, de muito mais duro e persistente escrutínio, de muito mais rupturas, e estamos todos apaziguados com a nossa mediocridade. Salazar considerava que esse apaziguamento era o "viver habitualmente", na pobreza e no remediamento, com um chefe benevolente que nos protegia do mundo exterior e que dava uns "safanões a tempo" para nos proteger dos maus de dentro.

Até por causa da crise, da crise real e da "crise" que é usada para esconder o real, precisávamos de um grande abanão, mas nem para isso parece haver forças endógenas. O país estagnou há muitos anos e agora afunda-se pouco a pouco, sem sequer haver muita preocupação com isso. Parece que só os pessimistas, esses tenebrosos seres que "não trabalham e só criticam", "não fazem nada de construtivo e só dizem mal", na boca do tandem Sócrates-Santos Silva, se mostram, pelos vistos exageradamente, preocupados.

(Versão do Público de 27 de Dezemebo de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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