ABRUPTO

22.12.08


A ABSURDA IDEIA DE QUE HÁ UM "REGRESSO A MARX"


Todos nós coleccionamos em vida uma série de coisas absurdas que ouvimos e lemos e que têm vida própria no excelente meio de cultura da comunicação social. Uma das variantes actuais desta forma especial de virose da asneira é a afirmação repetida, até por gente muito séria, de que a actual crise económica e financeira dá razão a Marx, mostra a necessidade de um "retorno a Marx". Marx? Nosso Senhor, ou o Supremo Arquitecto, perdoai-lhes porque não sabem do que falam e Marx, se tivesse ironia, o que não tinha, deveria estar a rir-se no seu túmulo de Highgate decorado por uma coroa de flores envelhecida de uma delegação do PC dos Estados Unidos, aquele que tinha mais membros do FBI do que militantes genuínos.

Comecemos pela escolha do próprio Marx como aquele a que se "regressa" sempre que há uma crise da economia capitalista, acompanhada por um sentimento popular de sempre, que já existia na Roma antiga, contra o dinheiro e os ricos, e que agora se intitula "anticapitalismo popular". Por que não um regresso a Proudhon, ou Bakunine, ou Kropotkine, ou Lassalle, ou qualquer das múltiplas variantes de críticos do capitalismo e da democracia que marcam o pensamento do século XIX? Por que não um retorno à "doutrina social da Igreja", das encíclicas sociais como a Rerum Novarum, que marca a evolução da velha condenação eclesial da usura (e dos judeus) para a crítica ao capitalismo e a afirmação da "preferência pelos pobres"? E por que não, escândalo dos escândalos, ao anticapitalismo do nacional-socialismo, ou do fascismo italiano, todos eles muito socialistas na sua génese? E, por que não, aqui com inteira razão de ser, um retorno a Schumpeter, ele sim que escreveu exactamente sobre coisas que se estão a passar? Mas, "regressamos a Marx" porque a cultura dominante da nossa elite de esquerda e de direita foi feita de uma vulgata marxista, mais do que de Marx propriamente dito, e por isso para eles as tribulações do capitalismo remetem para Marx, tão natural como erradamente. O capitalismo é "mau", logo Marx tem razão.

Na verdade, aquilo que é o conteúdo do "regresso a Marx" resume-se ao facto de o Estado estar a intervir para tentar remendar os efeitos da crise financeira e minimizar os efeitos dessa crise na chamada "economia real", como se a outra fosse "irreal", ou seja, Bush quando decide injectar no sistema financeiro uns milhões de dólares, ou Obama quando quer salvar a General Motors, Sócrates quando reforça o capital da CGD com fundos públicos, ou os governos quando avançam com variantes nacionais de programas como o Tennessee Valley Authority de Roosevelt para combater o desemprego estão a propor uma solução "marxista" para os problemas da crise. Mais intervenção do Estado, menos "mão invisível", menos mercado livre, logo mais Marx. Para quem conheça Marx esta ilação é completamente absurda.



Conhecidos governantes que fizeram um "regresso a Marx", a julgar pelo que se escreve sobre eles.

Na crítica ao capitalismo moderno que Marx fez no Capital e em outros textos, na sua convicção "científica" da inevitabilidade da "autodestruição" do capitalismo, formulada em "leis" a que Marx e Engels atribuíam o mesmo estatuto das leis de Newton, nenhuma se aplica à actual situação de crise económica e financeira, nem as análises, nem as soluções. Só por ignorância de Marx, e de Engels como intérprete "legítimo" de Marx, é que se pode considerar que o reforço do papel do Estado na economia, através quer de nacionalizações, quer de "regulação", correspondem ao programa político marxista. Quer Marx, quer Engels, quando confrontados com as primeiras formulações de um programa "mínimo" por aqueles que hoje conhecemos como os fundadores do Partido Socialista Alemão, nos chamados "programas de Gotha e Erfurt", não fizeram outra coisa senão mostrar como a ilusão da intervenção do Estado era mais uma adaptação do capitalismo do que um passo na sua destruição, mais uma extensão do Estado prussiano e da política de Bismarck do que algo que revolucionários pudessem aceitar. Apesar de algumas ambiguidades dos "programas mínimos", mais presentes em Engels do que em Marx, a rejeição das ideias de Lassalle é radical, perguntando-se Engels na crítica ao Programa de Erfurt se a reivindicação de serviços públicos estatais (justiça, saúde, etc.) era compatível com "a rejeição do socialismo do Estado". E, por fim, a cereja no bolo marxista: é criticando o Programa de Gotha que Marx se refere a que entre "a sociedade capitalista e a sociedade comunista" está a "ditadura do proletariado". É a este Marx que "regressam"?

Depois, nada há de menos marxista do que confundir a "luta de classes" com o discurso genérico e ambíguo dos ricos e dos pobres, o que faria Marx tremer de raiva. Na verdade, um dos grandes combates políticos de Marx como "marxista", depois de ser hegeliano, foi insistir que o papel do proletariado não vinha da vontade nem do irredentismo operário (bem menor em muitos países do que o da pequena-burguesia ou do campesinato), mas da condição proletária, ou seja, de um dado "científico" inscrito na relação de exploração. Por isso, a revolução só podia ser feita pelo proletariado constituído em partido (a grande divergência com Bakunine), matéria que Lenine transformou em realidade política, mas que os socialistas alemães herdeiros directos de Marx, Engels e Kautsky nunca conseguiram fazer.

Podia continuar por páginas e páginas. Duvido que Marx achasse mal a globalização financeira como passo para a globalização do capitalismo e, claro, da revolução. Por exemplo, falando sobre a protoglobalização que conhecia no seu tempo, Marx acabava por ser um partidário da política de canhoneira, que, abrindo a tiro os grandes mercados fechados da Índia, do Japão e da China, permitia que o capitalismo se tornasse mundial e, a prazo, a revolução também. Marx considerava que o capitalismo era superior ao "despotismo oriental" na grande ordem do progresso da História e nos seus artigos americanos defendeu a Guerra do Ópio. Aqui, até Eça de Queirós era mais "antimperialista".

Podia de facto continuar por páginas e por páginas, mas não vale a pena. Se ao menos o "regresso a Marx" se traduzisse numa leitura de Marx, um dos autores fundamentais da nossa contemporaneidade, ainda valia a pena. Não é isso que se passa, mas a deterioração acentuada do pensamento da chamada "esquerda independente" e das modas mediáticas. E disso Marx não tem culpa.

(Versão do Público de 20 de Dezembro de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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