ABRUPTO

12.10.08


É À POLÍTICA E NÃO AO ESTADO QUE DEVEMOS REGRESSAR


A cabeça politiqueira do nosso primeiro-ministro anda contente. A crise financeira ajudará a estragar mais o país, que já estava muito estragado antes dela, mas dá aos seus cálculos aquilo que ele precisa: um enorme pretexto para se eximir da prestação de contas nas próximas eleições. O pretexto, sonha ele alto todos os dias, tem várias coisas excelentes, parece ser feito de encomenda por uma agência de comunicação: oferece-lhe inimigos, que já chegam ao pódio esmagados pelo pelourinho público; oferece-lhe desculpas que pouco têm a ver com as culpas; oferece-lhe um deus ex-machina, a América "gananciosa" de Bush, para atirar as pedras; e dá-lhe uns lugares-comuns, uns rodriguinhos de fast food ideológico para passar por um teórico do socialismo moderno. Não se pode querer melhor.

E é o que ele tem feito com evidente prazer. Desde o início da crise do subprime que nos comícios, em que transforma toda e qualquer intervenção, fala contra a bolsa, contra os fundos privados, contra a selvajaria dos mercados, contra a "crise que vem de fora", da América. O primeiro-ministro rejubila com as "nacionalizações" dos bancos, com o intervencionismo estatal de Bush e outros remédios que mostram que, no desespero da crise, os "neoliberais" também correm para a asa protectora do Estado e Bush fica socialista. Que contente que ele está com esta confirmação das teses socialistas sobre a maldade intrínseca do mercado e, num tom bíblico, agora colocado na moda por Obama, afirma:
E quem sai derrotado são os apóstolos do Estado mínimo e do mercado desregulado. Quem sai derrotado são aqueles que, durante anos a fio, enalteceram as virtudes imbatíveis de um mercado entregue a si próprio. Quem sai derrotado são aqueles que sempre professaram a sua fé na mão invisível do mercado, para agora, à falta da outra, reclamarem a intervenção da mão bem visível do Estado!
Reparem como ele raciocina como as páginas do sobe e desce dos jornais, aquele "derrotado" vem daí, desse mundo simples, onde tudo se reduz a uma competição semanal de ganhos e perdas. Ele não diz que os "derrotados" são os que vão perder emprego, casas, dinheiro com esta crise. Desses ele cuida pouco, ele quer é sangue dos "ideólogos derrotados" e vira-se para, imaginem!, para esse pilar do liberalismo em Portugal, o PSD. Eu sei muito bem de onde vem este "derrotado" - vem do mundo yuppie que moldou as ideias de sucesso que educaram o jovem Sócrates nas juventudes partidárias. O mundo que também nos deu o subprime.

Estou a ser duro e injusto com o primeiro-ministro? Duro, talvez, porque desde as histórias do diploma e das casinhas que a personagem me aparece bem mais perigosa do que antes, mas certamente que não estou a ser injusto. Os socialistas estão no poder em Portugal há mais de dez anos em 13, com o intervalo dos três imperfeitos anos de Durão Barroso-Santana Lopes. 


Não há instante em que o primeiro-ministro (e outros ministros que aprenderam já a mesma mantra, como o ministro da Administração Interna) não se volte para culpar esses três anos de tudo o que "não foi feito" (mais uma vez repetiu-o esta semana), sem que se lhe deva lembrar que isso se aplica em triplicado a governos em que ele esteve, a começar pelo de Guterres. Por isso, quando se lhe ouve falar dos "neoliberais" que mandaram o Estado e os governos arredarem-se da economia e eliminarem a regulação, gostaria de saber como é que ele explica que, se foi assim, como é que nós não devemos responsabilizar os governos socialistas, um banco central presidido pelos socialistas e entidades reguladoras em que os socialistas substituíram os poucos independentes que lá estavam por gente mais próxima do poder.

Na verdade, pouca gente vi mais deslumbrada com as virtudes do mercado e com a redução da política à economia do que estes socialistas da "terceira via", que de Guterres a Sócrates são hoje a maioria do nosso PS. Quem o disse muitas vezes foi Mário Soares e Manuel Alegre. E perguntar-lhe se ele está a falar, entre os "derrotados", dos primeiros-ministros Guterres e Sócrates, como os socialistas que traíram em nome dessa "ideologia defunta" do "neoliberalismo" e não dos que em Portugal nos lembravam todos os dias e bem que "não há almoços grátis". E, de facto, continua a não haver almoços grátis, nem "Magalhães" grátis, nem nada grátis, nem as palavras do primeiro-ministro são grátis. Eu, pelo menos, quero fazer-lhe pagar o almoço.


Mas há mais e pior do que o assumir das culpas e o apontar de dedos. É que, quando o ouço falar na "mão bem visível do Estado", que é suposto aparecer cada vez mais nesta crise, ele está a pensar obviamente na dele, na do Governo, na do PS. Ora no ambiente abafado em que já vivemos, em que o Governo trouxe de uma forma, sem comparação com o passado, os negócios todos para o interior dos gabinetes, em que o Governo não disfarça muito as pressões que faz sobre empresários e empresas que receiam colocar o seu nome numa mera lista de credores do Estado, está aqui todo um programa de reforço do controlo do poder político socialista sobre a economia privada, sobre os últimos bastiões de alguma coisa que em Portugal seja independente do Estado e possa funcionar como um contrapeso. O que ele nos está a propor é o reforço do controlo político-partidário da sociedade, com pretexto no retorno do Estado.

O Estado que Sócrates quer de regresso sempre cá esteve. Muito e de mais. Tem, como se sabe, excelentes credenciais em Portugal. Mesmo que se lhe não atribua a responsabilidade das nacionalizações, uma medida revolucionária para fazer "outro" Estado, pode-se-lhe e bem atribuir até aos dias de hoje o modo como geriu o património da economia privada que o PCP lhe atirou para cima. E a capacidade de gerir esse bem colectivo está à vista: com muitos dos gestores que ainda por cá andam a arrastar défices gigantescos nas suas gestões (mas para estes não se aplicam as acusações que são feitas aos seus congéneres da AIG que andaram a gastar milhares em férias de luxo por conta da empresa falida), as empresas públicas foram praticamente à falência, a banca estatal idem, e muitos e muitos milhões, ainda em contos e não em euros, desapareceram do mapa em empresas como a TAP, a CP, a RTP, etc., etc. Naquilo que era suposto cuidar, defesa, segurança interna, serviço nacional de saúde, segurança social, educação, administração pública, serviços públicos, a relação custo-benefício entre o que se gastou e aquilo que se obteve, assusta qualquer mortal.

À volta do Estado diminuiu a liberdade, a liberdade económica e a liberdade das pessoas e das empresas, e proliferou o subsídio, a indolência, a pequena fraude e cunha, o velho Portugal paternalista e pobre, provinciano e esperto, dando sempre mais aos que já têm e menos aos que precisam, clamando aos ventos todos a hipocrisia de que sem ele não há justiça, ele o injusto-mor. É à política que se deve regressar e não ao Estado. É à política com a carga de liberdade que ela exige e comporta. É a política com insatisfação com os medíocres resultados e com a empáfia dos governantes. E é também à política, não tanto como ideologia, que é uma ideia mais do passado do que do presente, mas como filosofia, como história, como saber, como opinião e acção, com experiência, com toda a tríade do Logos, do Pathos e do Ethos, e com esse senso comum que tanta falta faz em momentos como este, em que nos querem enganar e muitos de nós deixamos.

(Versão do Público de 11 de Outubro de 2008)

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© José Pacheco Pereira
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