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(JPP)
ERRATA COM BLAKE E MORTIMER
George Steiner conta em
Errata como, muito novo, o pai lhe lia os poemas homéricos em grego e o obrigava a soletrar as palavras, comentava as traduções, e o intrigava com as histórias da
Ilíada e da
Odisseia como se fossem adivinhas de que ele tinha de encontrar a solução lendo os livros. Em grego. Hoje já não há infâncias destas e todo o mundo destas infâncias, na
Mitteleuropa, desapareceu com Hitler, e com o declínio das humanidades. Mas todo o livro autobiográfico de Steiner ecoa estas primeiras leituras infantis e juvenis, que marcam a vida toda.
Quando me pergunto que livros me fizeram, nem sempre aparecem logo os "10 livros da minha vida" com que se costuma responder aos periódicos inquéritos jornalísticos que se fazem ciclicamente, quando nos jornais e revistas se esquece a memória das listas anteriores, ou a imaginação falha como falha muitas vezes. E lá vem a
Bíblia, Homero (quase sempre a
Odisseia e poucas vezes a
Ilíada), Camões, Rilke, Nietzsche, Dante, Mann e outros. Sem dúvida, o cânone.
Mas foi mesmo assim? Foi e não foi. O meu primeiro contacto com Xenofonte foi uma banda desenhada num livro de Português do ensino técnico, então tido como um ensino menor. Talvez por isso os puristas dos livros únicos permitiam uma banda desenhada em vez de excertos eruditos da
Anábase que deviam ir para os liceus, porque era para os "de baixo", que queriam ser serralheiros, montadores electricistas ou mecânicos de automóveis. Mas aquele
Talassa ficou sempre. O meu primeiro e único contacto, até hoje, com o
Robinson Crusoé foi numa edição para crianças que também tinha banda desenhada do outro lado das páginas do texto e uma capa gritante de cores. Ou seja, lia-se a história e não o texto, lia-se pela história e não pela qualidade da ficção literária. Razão tinham João de Barros e Adolfo Simões Müller.
Verdade seja que havia excepções: li a
Alice, as duas, na edição certa, sem adaptações, uma tradução com as gravuras de John Tenniel, sem as quais a imaginação teria sempre muita dificuldade em "ver" a Alice e as suas fantásticas personagens. Quem imaginaria alguma vez o Humpty Dumpty, o chapeleiro, o lagarto a fumar narguilé (foi aqui que aprendi a palavra) e o fabuloso peru com os papelotes nas pernas a fugir pela mesa fora, que, esse sim, nunca mais me saiu da cabeça, apesar de ele próprio não ter cabeça. Os meus contos de Andersen, as terríveis histórias da Sereiazinha, dos Sapatos Vermelhos, do Soldadinho de Chumbo também vieram numa edição decente, mas, as circunstâncias sendo como são, já as minhas
Viagens de Gulliver foram lidas numa velha edição do princípio do século XIX, que tinha a vantagem de ter mais do que os reinos de Lilliput e Brobdingnag, mas as menos lidas e menos infantilizáveis viagens a Laputa, Balnibarbi, Glubbdubdrib, Luggnagg e ao Japão. Claro que me interessaram menos e muita coisa não percebia, mas ficaram lá num canto e voltaram com Phobos e Deimos, com a astronomia e a utopia.
Eu sou capaz de fazer a genealogia do que veio daqui: o fascínio pelo Robinson explica o da
Ilha Misteriosa de Verne e pelo Rosny Aînê da
Morte da Terra que vinha na Colecção Argonauta. Sempre mais ou menos a mesma história: um homem sozinho num sítio desconhecido, ou num mundo a desaparecer, sobrevivendo pela habilidade ou pela ciência. Ou perecendo como na
Morte da Terra com um último olhar sobre uma terra devastada e árida. Esse último olhar também comunicava com outros. Com os mercenários gregos, perdidos longe da sua pátria, no relato de Xenofonte que me fizeram mais tarde perceber muito da
Peregrinação e dessa fabulosa e esquecida série televisiva alemã
Heimat, de Edgar Reitz.
O Gulliver, o Robinson, a Alice, mais o interesse pelo hipnotismo na Estranha História do Senhor Valdemar, o medo puro nas histórias de Egar Allan Poe, um livro de Lovecraft que nunca acabei de ler porque me desapareceu, de ainda mais puro medo, todo o Júlio Verne, mais a Colecção Argonauta, por aí adiante, faziam um contínuo que encontrava um cimento comum numa série de histórias de banda desenhada: as aventuras de Blake e Mortimer de Edgar P. Jacobs que o
Público está agora a republicar. Exactamente, na minha Errata, tenho a certeza de que foram aquelas histórias as que entraram bem dentro da cabeça, a ferro em brasa, numa altura em que as crianças ficam adolescentes e os adolescentes se preparam para ficar adolescentes petrificados, ou seja, adultos imperfeitos por culpa dos livros.
Nesses anos, a banda desenhada ainda era história aos quadradinhos e não se lia em álbuns, uma inovação muito tardia. Lia-se nas revistas, da série mítica que faz a biografia de muita gente, em particular o
Mundo de Aventuras e o
Cavaleiro Andante, mais tarde o
Tintim. O que significava que, para o verdadeiro amador, cada número era uma alegria e um sofrimento. Alegria porque havia mais uma página para ler - sim, apenas uma página por semana, os ritmos eram outros -, sofrimento porque se ficava ansioso à espera do que iria acontecer depois. Outra coisa que também era diferente era que as histórias não eram de "autor", mas das suas personagens. O nome do autor vinha muitas vezes escondido no título e ninguém o fixava, o que importava era que se tratava de Blake, Mortimer e de Olrik e do mundo ímpar em que se desenrolavam as suas aventuras.
Como as histórias se liam à medida que as revistas (em particular, no meu caso, o
Cavaleiro Andante) as publicavam, nem todas as aventuras de Blake e Mortimer tiveram para mim a mesma importância. Não se andava para trás e para a frente, lia-se o que saía na altura, não se conhecia o que estava antes, que não era de fácil acesso. Por exemplo, nunca li na altura o início da Marca Amarela, porque a apanhei a meio, e nem sequer soube, a não ser muitos anos depois, do Segredo do Espadão. Para mim, eram três histórias as fundamentais: o Mistério da Grande Pirâmide, o Segredo da Atlântida e a Armadilha Diabólica. Os seus temas eram semelhantes na mistura de "mistério" com viagens no tempo, ou viajando literalmente no tempo (como na história de H. G. Wells que para mim "era" o filme com o Rod Taylor), ou encontrando uma parte esquecida ou desaparecida do passado no presente, ou dentro da Grande Pirâmide ou debaixo das furnas dos Açores. Foi a Atlântida de ficção científica que me levou, muitos anos depois, a interessar-me por esse império de má fama, o do "sexo dos anjos", o Império Bizantino. Tudo o que li sobre Constantinopla, Bizâncio, o meu gosto por Istambul veio do símbolo do tridente da Atlântida açoriana e dos títulos bizarros que as personagens se davam como arconte ou basileus.
Na minha sina, não me consigo livrar de me imaginar no mundo de Blake e Mortimer, coisas que um adulto com juízo não faz. De facto, os livros actuam de maneira misteriosa, como Deus. E, alguns, ainda de forma mais misteriosa, mas mais humanamente explicável, como o Diabo. Não faz mal, sem eles seríamos certamente muito piores e menos interessantes. "
Boring", diria o professor Mortimer no seu clube; "
dull", responderia, monossilábico, o oficial do Exército de Sua Majestade, Blake.
*
(...)
«A Marca Amarela» é a obra-prima da BD franco-belga. Mais ninguém conseguiu chegar perto e duvido que alguma vez tal seja atingido, apesar dos meritórios esforços do Benoit e, especialmente, do Juillard. O problema é que não basta a fidelidade ao traço do mestre Jacobs - há toda uma envolvência e uma atmosfera que jamais se repetiram. Afinal, qual será o apaixonado por esta obra-prima que, estando na capital britânica, não procure "aquela" Londres?
O impacto da "linha clara" na minha formação estético-literária no que à BD diz respeito foi de tal forma que, ainda hoje, tenho dificuldade em digerir algumas obras que, diz a crítica, são "fantásticas", como as saídas da pena de David B., por exemplo.
Portanto, caro Professor Mortimer, desculpe, caro JPP, os meus parabéns pelo seu mergulho num passado que, sem ser o meu, me é muito próximo.
Pedro Brás Marques (aka Olrik)
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Mais uma vez sem querer abusar da paciência dos leitores do "Abrupto" venho dar-lhe conta de que, ainda que as infâncias sejam diferentes entre gerações, elas apresentam algumas semelhanças.
Entre elas estão as narrativas que nos entram na cabeça. Sendo um filho dos anos 70, não li a "Tintim" nem a "Cavaleiro Andante" como foi o seu caso, mas já comecei a ler as"inovações" dos álbuns do Tintim, Astérix e do fabuloso Blake e Mortimer.
Mas além dos álbuns, também a minha infância foi marcada pelos "comic books" que eram histórias intermináveis de pessoas abençoadas por super poderes mas atormentadas pelas consequências desses poderes, sendo que a que mais me impressionava era a constante interrogação que estes super-heróis faziam das suas vidas. Para um miúdo de 7 ou 8 anos, elas não tinham muito sentido, porque se uma pessoa podia voar ou ver através das paredes não havia necessidade de andar sempre tão taciturno e preocupado com o mundo. Nestes casos, entre muitos, estão o Homem-Aranha e os X-Men. O primeiro, apanhado na confusão que é a adolescência, por grandes poderes que traziam grandes responsabilidades (afinal era apenas um miúdo a tentar sobreviver na selva do "high school" americano) e os segundos que viviam num regime de semi-apartheid implícito que os obrigava a esconder-se do resto da humanidade, ao mesmo tempo que viviam uma espécie de guerra civil entre eles.
Não sendo um conhecedor profundo da Antiguidade Clássica, parece-me que isto está ao melhor nível das tragédias gregas cheias de dramatismo e testes constantes às personagens. E era isso que as fazia tão humanas, apesar do seu carácter excepcional.
Mas como já cresci com a televisão, devo dizer que a narrativa que mais me impressionou e cujos valores partilho foi o "Startrek" de Gene Rodenberry. Em plena Guerra Fria e ainda quando não se via o seu fim, as aventuras da tripulação da Enterprise na busca de novas civilizações, onde entre os terrestres havia americanos, japoneses, russos e escoceses, brancos, pretos e amarelos a comandar a nave em conjunto com um enigmático vulcano de orelhas pontiagudas, deixaram-me sempre uma marca de universalismo e de curiosidade com o mundo.
À série original ainda se seguiram a "Next Generation", "Deep Space Nine" (também conhecida por Deep 'Shit' Nine pelo seu fracasso de audiências), "Voyager" e a última "Enterprise" que passa agora no canal Mov. Em todas elas, sempre a dificuldade de nos relacionarmos uns com os outros,a necessidade de resolução de conflitos esgotando as vias diplomáticas mas optando firmemente pelo conflito armado e assumindo as consequências, quando tudo o resto falhava, uma eterna curiosidade pelo mundo e a tão humana vontade de auto-melhoramento. Foi esta a narrativa que mais fez a minha infância.
E fê-lo de tal maneira que além de partilhar os seus valores, graças a ela conheci um dos meus melhores amigos. Na noite em que nos conhecemos, ficámos a discutir a série até às 4 da manhã. A discussão continua até hoje e a amizade mais forte do que nunca, e tudo graças a uma série de televisão com uma das mais belas naves vistas no écran.
Possivelmente as infâncias de hoje já não serão marcadas por estas narrativas, o que é uma pena. De qualquer modo fica aqui o voto dos vulcanos para essas infâncias e para todos os leitores do Abrupto: Live long and prosper.
(João Paulo Brito)
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Considerando o último post, um dia que passe pelo Porto, gostaria de o convidar a visitar uma livraria só de banda desenhada, que porventura não conhece. Chama-se Mundo Fantasma (título de livro) e fica no
velhinho Brasília. Mas não tem Blake e Mortimer... Ou melhor, tem em português por esta altura para lá nos últimos dias de saldos ou em francês, em caixotes. Ambos sobras de recente mudança de instalações e o último vítima da completa queda em desgraça do francês. Assisti a isso nestes 16 anos e a pretexto da mudança, retiramos os últimos 2000 álbuns franceses das prateleiras. Mas tem o Alan Moore e Frank Miller que ainda há pouco vi referidos no Abrupto. E praticamente toda a bd americana de qualidade a ser
publicada hoje, incluindo o incontornável Chris Ware de quem se diz que é o recordista absoluto de prémios (tendo ultrapassado o basebolista Babe Ruth, com mais de 8.000 prémios). E também japonesa, nas edições americanas, excelentes por sinal incluindo extensa obra de Ozamu Tezuka, pai do mangá, o Hergé do Japão.
Tudo isto se deve ao Tintim (a revista). Não tenho idade para as anteriores. Identifiquei-me completamente com a leitura de aventuras que começavam ou ficavam a meio (e mesmo assim eram lidas e relidas diversas vezes) e com o sofrimento de esperar pela semana seguinte. E para tornar curta uma história longa, um belo dia de 1992 praticamente por brincadeira, importei 30 contos de livros da editora Fantagraphics. E desde aí, digamos que tem sido difícil sair do Mundo de Blake e Mortimer.
Pode ver umas fotografias aqui:
http://blog.mundofantasma.com/?p=1640
http://blog.mundofantasma.com/?p=1656
Tendo consciência que 99,98% dos portugueses está convencido que a banda desenhada é para crianças, a realidade é que não temos bd para crianças. Agora é mais dos 17 aos 77 anos. O Tintim faz muita falta
para os 7. É muito difícil existirem infâncias como a de Steiner, quando as crianças já nem bd lêem, que em boa verdade começa a escassear em português.
(José Rui Fernandes)
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Não pude deixar de contribuir com o meu caso pessoal; cresci com Asterix, Tintim, Lucky Luke, Blake e Mortimer, e para falar a verdade com as edições brasileiras da Disney, aqueles gigantes "Disney Especial" em que cada um tinha um tema, mais as edições do Tio Patinhas em que cada capa era uma espécie de fantasia à volta do personagem.
Com a adolescência vieram os super-heróis, primeiro Marvel e depois DC Comics (há de facto diferenças). É engraçado como a partir daí a guerra franco-belga /anglófonos tornou-se para mim quase uma questão religiosa. Creio que há muita gente que estando virada para um lado, recusa-se simplesmente a experimentar o outro (como dizem que acontece com as guerras PC vs. Mac). Eu confesso que a certa altura achava muita da franco-belga pretensiosa, e não me atraía. Enfrentava orgulhosamente o meu ostracismo, tanto com os personagens super-heróis como com a BD adulta e inteligente que a DC Comics começou a fazer (recomendo The Sandman especialmente).
Tudo isto para dizer que, curiosamente, nos últimos anos, voltou uma espécie de nostalgia aos "comics", nostalgia pelo simples, pelo inocente, pelo puro, pelos super-heróis que fazem o que fazem apenas porque é o correcto e não porque é uma decisão existencial cheia de consequências (e nesta perspectiva pode-se dizer que o filme The Dark Knight vem 20 anos atrasado, tal como Watchmen). Creio que o JPP, se aprecia livros, capas, esse tipo de memorabilia, talvez gostasse de apreciar um artista em particular que tem vindo a ser descrito como aquele que capta a verdadeira "essência mitológica" do super-herói. Chama-se Alex Ross. Eu fico verdadeiramente fascinado com as ilustrações ( e olhe que eu sou do tipo que liga mais a argumentos do que a ilustrações), creio que sobre algumas delas seria possível construir verdadeiros ensaios (sobre o papel da Luz, por exemplo).
Pode encontrar algum material em www.alexrossart.com. Aconselho as obras sobre os personagens "Justice Society of America".
Se gosta também desta ideia da nostalgia em BD, o site www.coverbrowser.com é excelente para encontrar muitas (mesmo MUITAS) capas de comics americanos digitalizadas, desde os anos 30 até a acutalidade.
PL
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Então o príncipe "Eisenherz" ("Prince Valiant"). Possuía somente um volume (prenda para os meus 10 anos de uma tia e já bastante "lido"). As minhas filhas adoraram. Comprei então todos (salvo erro são 12). Ele continua o nosso heroi, inseparável do nosso imaginário e fiel depositário das delícias de leitura na infancia .
(Monika Kietzmann Lopes)
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(...) continua a povoar os meus sonhos A marca amarela, provavelmente, também, a melhor história de BD alguma vez escrita, sem menosprezo para as histórias de Corto Maltese. Mas estas últimas enfermam da mesma doença que Jorge Luis Borges apontou a James Joyce. Joyce, dizia o velho génio argentino, não escrevia para o leitor, escrevia para a História da Literatura. Essa é também a diferença entre Edgar Jacob e Hugo Pratt. Aquele escreveu aventuras a pensar no leitor; este, a pensar na História da BD.
(António Cardoso da Conceição)