ABRUPTO

17.10.08


COISAS DA SÁBADO: RETRATOS DE UM SONHO ORWELLIANO

A crença tecnocrática no gadget explica muita coisa, mas mostra ignorância sobre o modo como as tecnologias mudam as sociedades. Este anúncio da Portugal Telecom é um bom exemplo do pesadelo orwelliano que habita as mentes do nosso Primeiro-ministro e dos que com ele estão a conduzir esta operação. Veja-se aquela escola, aqueles meninos, aquele “mundo” que parece saído de um laboratório biológico de nível 5, em que se manipulam vírus perigosos, ou, pior, de uma prisão de alta segurança. Tudo branco, meninos e escola, só a cor azul, uma cor fria, do “Magalhães” se destaca. Vejam-se mais os materiais da escola da ficção cientifica: fórmica, vidro, aço, alumínio, plástico. Vejam-se aqueles meninos asseados e sem classe social, sem identidade, a que só falta colarem um número, um código-barra, meterem-lhes um chip como aos cães, aqueles meninos sem individualidade. Veja-se o mundo perfeito na sua ordem burocrática, tecnocrática e policial, os computadores no meio das mesas, nem mais à direita, nem mais à esquerda, todos com a tampa aberta no mesmo ângulo. O que é que estará naquele ecrã? Não deve ser nada de interessante visto que nem as crianças que não levantam o braço, olham para lá. E veja-se o que não está lá: o professor em primeiro lugar, que se encontra escondido no ponto de fuga da imagem, para onde aquelas crianças de casting na sua impecável limpeza e brancura nem sequer parecem olhar. Depois não há em cima de uma única mesa nem um papel, nem um lápis, nem um livro, há o “Magalhães”.

Espero bem que nunca haja uma escola do ensino básico assim. Este mundo asséptico é a completa negação do que deve ser o ensino básico, para crianças para quem a cor, a luz, o som, o movimento, são o elemento básico de uma vida que tem que entrar com elas dentro da escola. Neste mundo PT - Sócrates, o elemento essencial do sucesso pedagógico aparece como sendo o computador, quando é o professor, é a capacidade empática do professor a chave de tudo e é essa realidade, mais difícil de dominar e melhorar, que não se alimenta da crença na instantaneidade do saber pelo acesso aos gadgets.

Aquelas crianças têm que aprender a ler em livros e não no ecrã do computador, por razões que qualquer pessoa que saiba da matéria explicará: não se lê da mesma maneira nos dois sítios. Aquelas crianças têm que aprender a escrever com lápis e papel e não no ecrã do computador ou no SMS do telemóvel, por razões que qualquer pessoa que saiba da matéria explicará: não se escreve da mesma maneira nos dois sítios. Pode-se sempre dizer e bem que é em livros e também no ecrã, é em papel e é no processador de texto. Muito bem, só que a ordem porque aprendem e o modo como interligam as diferentes literacias não é irrelevante. Bem pelo contrário, a não ser que se queira fazer um atestado de óbito à leitura literária por exemplo, ou diminuir ainda mais do que já está a riqueza vocabular da língua, com a concomitante perda de capacidade de comunicação, que se queira eliminar a possibilidade de se saberem fazer contas sem máquinas, por aí adiante.

Aquela escola da PT – Sócrates do reclame é para robots, não é para humanos.

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Este seu post desloca em absoluto o objecto do anúncio. O objecto é os Megas, o sucesso da campanha seria aliás mais retumbante se o Magalhães fosse crismado Megalhões, o resto, meninos, mobiliário, etc., é cenário. É um cenário fraco? Sem dúvida, a penúria de adereços tira qualquer verosimilhança à cena. A direcção de figurantes é péssima? Claro, os miúdos parecem imitar os hindus do Encontros Imediatos do Spielberg quando lhes perguntaram donde veio a sequência pentatónica que entoavam.

Imagine amanhã. Amanhã certamente o anúncio estará melhor, e com redução de custos de produção: Para tal basta retirarem-lhes tão supérfluos figurantes.

(Mário J. Heleno)

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Como o Dr. Pacheco Pereira certamente sabe, a sua frase 'Aquelas crianças têm que aprender a ler em livros e não no ecrã do computador' será dentro de alguns anos uma frase do género 'Musica só em vinil, quero lá saber de CDs'.. Existirá sempre lugar para o livro em papel, mas a grande aposta é para daqui a alguns anos (até ao final da próxima década) se reduzir largamente o consumo de papel no mundo... Concordo no entanto que o Magalhães não é o melhor exemplo para leitura de livros.. Aconselho-o a ler sobre o 'pai' do Magalhães: o projecto OLPC que esse sim permite a leitura em sitios solarengos, mas o futuro dos livros digitais para crianças passa por projectos como o 'tio' mais novo do Magalhães: o OLPC XO-2 (http://blogs.pcworld.com/staffblog/archives/006986.html). Note-se que o ecrã do XO-2 é tactil, pelo que as crianças podem 'rabiscar' completamente o seu livro (e o dos papás) sem causar danos irreparáveis.

Já este ano na feira de Frankfurt se começa a ver a maré a mudar, com a cada vez maior visibilidade da edição digital para livros. Espero que a Soporcel tenha planos para o médio-longo prazo, porque (finalmente) se começa a aproximar a morte do papel.

(João Ventura)

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Eu colecciono alguma BD anglófona desde há vários anos. Entre os vários tipos de narrativa que aprecio, gosto daquelas que conseguem integrar um determinado contexto político de forma verosímil. Este tipo de história tem tido vários autores ao longo dos anos, sendo dois dos autores mais famosos Alan Moore (de "V for Vendetta", um dos tais pesadelos orwellianos que passou para filme há poucos anos) e Frank Miller, que tem usado o subtexto político para criar atmosferas opressivas credíveis.

Uma das coisas que tenho notado ao longo dos anos é como certas invenções dessas histórias, como os slogans e anúncios políticos, que foram criados e integrados como paródia dentro do enredo, "saltam" de repente cá para fora. Isto é, tenho vindo a aperceber-me que a realidade começou a contorcer-se em direcção à ficção. O anúncio "PT- Sócrates" seria adequado numa das ficções de Miller ou de Moore de há 20 anos atrás (por falar em Moore, se puder investigue "Watchmen" que é uma história meio distópica, com uma forte carga política, e que vai ser agora estreado em filme).

Gostei de ler a sua análise, mas não sei porquê, não consegui evitar um sorriso rasgado a olhar para o anúncio. Porque é como se fosse "mais real", porque está ali. Porque alguém o fez. Porque coisas como aquela são de facto possíveis...Mas nesta era parecem normais(!) Sim, é tão, tão, tão orwelliano que o mais espantoso é que, se não fosse o JPP a chamar a atenção para aquilo, teria passado despercebido. Normal.

Hoje falei disso ao almoço, sobre o Magalhães. Sobre essa invasão tecnológica em geral. O Magalhães é apenas o último degrau numa progressão que não vem apenas de Sócrates, mas detrás (se bem que o PM tem de facto impulsionado a subida com um entusiasmo inusitado). Mas já há muito tempo que se discutem as máquinas de calcular nas aulas e essas coisas. Especificamente sobre o Magalhães, a pergunta que eu queria fazer, e faço mesmo porque não sei a resposta, é: como e quando é que se vai medir o sucesso do Magalhães nas escolas? Isto é, existe um projecto? Existem critérios de sucesso? É que estamos de facto a colocar nas mãos de crianças da primária algo que pode modificar completamente o seu futuro. Por todas as razões que JPP apresenta no seu artigo. Então e se não funcionar? e se sairem iletrados? E se sairem hiperactivos e com défice de atenção? E se não conseguirem fazer aritmética básica? E se não conseguirem escrever? E se não conseguirem construir texto, resumindo-se a "pastear" artigos da Net para fazer um trabalho? Quem mede? Quem avalia? E como? Não é demasiado perigoso pormos toda uma geração em risco?

Outros pontos para acrescentar:

os professores primários andam a ter que explicar aos pais que não, não é para levar o Magalhães para a escola. "O seu filho não sabe o que é uma letra, para que é que ele precisa do computador?"

E para mostrar algo que já está a acontecer: quando os estudantes do Superior começam a gravar as aulas em áudio e video via telemóvel, o que acontece ao conceito de "aula"? Quando os portáteis que deviam ser usados como auxílio ao exercício são usados para messenger e Net, o que acontece à aula? Quando tudo isto é complementado pelo regime de Bolonha que exige folha de presenças obrigatória - o que significa que o aluno passa duas horas a contar o tempo a passar porque tem de lá estar, mas não era preciso porque alguém grava a aula - o que acontece à "aula"?

Quando nós pensamos "as coisas estão a mudar" já vamos tarde; já mudaram. E nós não vimos.

(PL)

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Sabe qual o primeiro pensamento que me ocorreu quando vi o dito anúncio? Que a criança em primeiro plano, com o braço erguido e a alegria estampada no rosto, está ansiosa por responder a uma pergunta (convenientemente posta por alguém que não se vê: até pode ser outro magalhães) a cuja resposta ela não chegou pelos seus próprios meios ou conhecimentos, mas que apareceu já pronta a consumir no ecrán do magalhães, que assim obvia a necessidade de pensamento e presta um serviço ao país, diminuindo as taxas de insucesso e aumentando a auto-estima da criança, que a partir de agora terá a garantia de que as suas respostas estarão sempre correctas. Talvez a criatividade do publicitário tenha deslizado demasiado em direcção à verdade...

Gostaria apenas de fazer também um comentário à resposta do seu leitor PL, especialmente ao último parágrafo: ele tem toda a razão quando afirma que a situação que descreve já é o estado das coisas. Mesmo no ensino superior (de cuja existência, para além do nome, já duvido) é impossível manter a disciplina: eu não posso, sob pena de ser repreendido, proibir o uso de telemóveis e portáteis (note que eu não quero utilizar a palavra "aula", porque acho que já não tem referente; desapareceu hà alguns anos); as folhas de presença referidas por PL são utilizadas para dois fins distintos: primeiro, a protecção dos docentes que assim podem, em caso de insucesso maciço (que é frequente, especialmente em disciplinas científicas que ainda não foram completamente dizimadas por Bolonha), podem alegar que os alunos não aparecem; segundo, em alguns sítios (alguns prestigiados), a mera presença (juntamente com uma vaga "participação", onde cabe tudo) assegura três ou quatro valores na nota final, e isto permite descarregar para aí uns 60%, cujas notas estão entre o sete e oito.

Quanto à gravação das aulas, também eu, e outros, já passámos por isso; alguns espíritos bem-intencionados podem pensar que é apenas a utilização dos meios técnológicos para posterior estudo mas, infelizmente, o fim é quase sempre maldoso.

Aliás, nas pessoas mais críticas que ainda ficam por este meio (cada vez menos, porque foi adoptada uma filosofia de gestão que prega o desconforto dos funcionários) cresce cada vez mais a convicção de que a profissão de professor está a ser extinta, e que não durará mais do uma ou duas gerações, se tanto (já não é raro, por exemplo, que os mais jovens nesta profissão nunca tenham lido um livro, literário ou técnico e que manifestem as mesmas dificuldades que os alunos).

(João Soares)

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