ABRUPTO

6.7.08


A EUROPA DO SILLY WALK E DA MARCHE FUTILE

Os Monthy Python conseguiram finalmente ensinar aos frogs e aos krauts a maneira de andar do silly walk , ou, na versão francesa, La Marche Futile. Hoje a Europa é um grande palco de silly walkers a segurar com dificuldade a sua taça de champanhe e a bater nas costas uns dos outros, em fundo convenientemente azul ao som da Nona Sinfonia de Beethoven. Até que o briguento irlandês, mais o canalizador polaco, mais o misterioso checo, que ainda não aprenderam o andar dos tontos, vêm estragar a festa. Pensam que os tontos passaram a andar direitos? Bem pelo contrário, resolveram ensaiar mais uns passos rebuscados do silly walk, continuando o glorioso espectáculo no esplendor da relva feita pelos subsídios da Política Agrícola Comum.

Desde a introdução do euro, o último grande adquirido da UE que teve origem na sua política fundadora, em que os "pequenos passos" dão origem a passos gigantescos, que os dirigentes europeus passaram a fazer ao contrário: a querer dar passos de gigante e a acabar por ficar tão enredados pelos pés, que não saem do sítio. Ou pior, andam para trás. Há mais de dez anos que os dirigentes europeus conduzem uma política desastrosa à frente da União Europeia, que tem somado fracassos sobre fracassos e que, mesmo perante as evidências do erro, continuam a persistir no mesmo erro. Não aprenderam, não aprendem e provavelmente não aprenderão e pelo caminho vão destruir uma ideia, uma força, uma organização, um acordo, um caminho comum que trouxe paz, prosperidade, e sentido comum à Europa.

A chave deste erro é simples: a uma dada altura, assustaram-se e deslumbraram-se. As duas coisas ao mesmo tempo. Assustaram-se porque perceberam que o fim do comunismo na Europa não ia ser tão fácil e tão olímpico como pensavam. Perceberam que, do mesmo modo que os alemães ocidentais pagaram um preço elevado pela reunificação alemã - o último rasgo político de dimensão histórica de um dirigente europeu, Helmut Khol -, se a UE quisesse "reunificar" a Europa, ou seja, fazer o alargamento aos países do antigo Pacto de Varsóvia, teria que pagar também muito. Teria que, por exemplo, alterar significativamente políticas como a PAC, teria que redistribuir poder pelos novos países e isso significava alterar a relação de forças que favorecia o chamado "motor", a França e a Alemanha.


Depois surgiu a guerra jugoslava, o atestado de impotência militar da UE, que não teve outro remédio senão chamar os americanos, que ainda estavam dispostos a vir. A seguir veio a divisão iraquiana, a mostrar que, em matérias estratégicas, a UE estava muito longe de se entender. Por fim, os chineses bateram à porta e a crise do chamado "modelo social europeu", que já tinha mostrado que não servia face à competição americana, ia ser posto em causa por esse novo fantasma que assola o mundo, a globalização.

O susto veio junto com o deslumbramento, pares indissociáveis do mesmo desnorte. O deslumbramento veio do gaullismo de Chirac, transformado em política externa da UE, e de uma Alemanha cada vez mais emancipada do seu complexo de derrotada da guerra, a propor-se transformar a Europa numa versão dos länder alemães. Havia várias consequências desejadas destas políticas: diminuir o papel da aliança transatlântica com os EUA, dar à Europa uma política externa de superpotência alternativa ao "império", competir com os americanos pela supremacia económica, e fazer um upgrade rápido da componente política da UE.

Para isso, essa direcção política tinha que ficar em boas mãos, as do "motor", e não nas daqueles países, como os do alargamento, que tinham o defeito de considerar que, para a sua sobrevivência, a OTAN e os EUA eram mais importantes do que uma UE sem armas, diminuindo os seus orçamentos de defesa e renitente em defrontar as suas opiniões públicas, com mortos em combate. Foi essa a essência do processo que se iniciou com a Constituição Europeia, manter nas condições da Europa a 27, o núcleo do poder político na França e na Alemanha e nos seus aliados menores europeus. Tinha que dar asneira e deu, porque era um desvio completo da Europa que tinha até então resultado: a prossecução do "plano americano" de Jean Monnet, Schumann, Gasperi, Adenauer.

Entrou-se no ciclo em que ainda estamos hoje e onde pelos vistos vamos continuar a estar: em Nice, foi a noite das facas curtas que se sabe, a gloriosa Constituição Europeia acabou às mãos do canalizador polaco, e o Tratado de Lisboa legalmente está morto, só que ainda há quem pense que o formol injectado nas veias faz de um morto, vivo. A Europa afastou-se, não sei se irremediavelmente, dos seus cidadãos, entrou numa política de logro e dolo, de que o Tratado de Lisboa com os seus truques e complots para não haver referendos é o mais degradado exemplo, e os seus dirigentes não sabem o que hão-de fazer, se um golpe de estado europeu contra os irlandeses, se continuar anos a tentar fazer o mesmo que já foi rejeitado duas vezes e mais seria se os europeus contassem para alguma coisa. Continua La Marche Futile.



A verdade pura e dura é que estes dirigentes perderam a vontade política de fazer uma Europa em comum, em negociar o que fosse preciso com vontade para se entenderem, e substituíram essa vontade que lhes faltava e que só dependia deles, pela tentativa de criar mecanismos de engenharia política que não passam em todos os sítios onde ainda houver traços de um debate e de uma consulta sobre a Europa.

E, no entanto, havia e há outro caminho, mas não é para andar ao modo tonto. Tudo aquilo que os actuais dirigentes da Europa dizem que é necessário fazer, pode ser feito com os mecanismos actuais dos tratados. Se o "consenso" que foi possível para o Tratado de Lisboa fosse obtido para corrigir essa aberração da Política Agrícola Comum, não estaria a Europa melhor? Se o "consenso" arrancado a ferros para o champanhe de Lisboa fosse obtido para uma política de defesa comum, não estaria a Europa melhor? E quem é capaz de garantir que o mesmo esforço de negociação e entendimento que deu o tratado não poderia dar políticas comuns na base dos tratados existentes? Ninguém.

É difícil? Certamente que é, mas a realidade mostra que mais difícil ainda é encontrar artifícios para substituir a vontade e o consenso pelos "motores", contrários ao espírito fundador da Europa que foi feita numa base de igualdade entre as nações. É fictícia essa ideia de igualdade? Talvez seja, mas tem funcionado melhor do que a tentativa de impor maiorias e minorias, cuja última racionalidade é demográfica, exactamente o que os fundadores da Europa não queriam porque sabiam que não funcionava. Como se vê.

(Versão do Público, de 5 de Julho de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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