ABRUPTO |
![]() semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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29.6.08
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POEIRA DE 29 DE JUNHO
![]() As memórias cobriam todo o quotidiano e todos os sentidos, tacto, olfacto, audição, visão. As memórias tinham-se tornado obsessivas e levado o coronel, um homem muito reservado, àquilo que ele considerava uma vergonha: contá-las. Via uma estrebaria, lembrava-se onde costumava deixar o cavalo. Via a rua, lembrava-se do lado do ouvido. Via o relógio, lembrava-se das horas. Via as horas, lembrava-se do relógio. Via pornografia, lembrava-se das cenas. Via o gin, lembrava-se do limão. Via um jornal inglês, lembrava-se de Londres. Via uma casa, lembrava-se da casa. Via Brighton. lembrava-se do casino. Via uma gravura, lembrava-se das gravuras que recebia, numa assinatura que tinha expirado. Via um melro, lembrava-se das gralhas. Ouvia "é hoje" e não era hoje. Via tudo com toda a nitidez como se as memórias fossem dele e não eram. Não estava bem do lado de cá e sabia que o lado de lá estava estragado irremediavelmente. Desejava esquecer, mas tinha ao mesmo tempo receio que as suas memórias já se estivessem a dispersar, que deixassem de lhe pertencer, que estivessem a ser contadas, a perderem-se numa voz nocturna que o assaltava hoje e de que também se lembrava ontem. Sabia que essa voz estava a falar algures. Imaginava um narração detalhada, comparações, distâncias, fugas, novas alegrias, repetições. Queria e não queria as suas memórias de volta. O coronel estava cansado, abúlico, perdera o interesse. Andava com pouco destino. Perdera a reserva, sentia-se ridículo. Imaginava os vizinhos, que sabiam da sua doença, a rirem-se dele que fora sempre um homem digno. Ele ria-se dele, o que era pior, contava ao grave doutor freudiano. Wittels anotou: "obsessive detail, cristal memory, pain, confusion." (url)
© José Pacheco Pereira
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