ABRUPTO

16.6.08


OS CUSTOS DA FRAQUEZA



A história universal não exibe senão o plano da Providência." (Hegel)

No dia 13 de Fevereiro de 2008 escrevi no Abrupto:
"Isto está de cortar à faca. É um pouco inevitável com a conjugação de três coisas em sequência: um pano de fundo de crise económica e social grave, que gera uma peculiar sensibilidade a questões como a corrupção, e, como na política não há alternativas, tudo desagua num ambiente pastoso, irritado e sem esperança. Hoje, num supermercado, um homem disse-me: 'Vai haver uma explosão'. Sei lá, alguma coisa vai haver. Não menosprezem os sinais."
Recebi o habitual coro de protestos. Que exagerava, que não havia nenhuma crise especial, que era preciso era optimismo, que os "velhos do Restelo" só viam coisinhas más no horizonte, que a oposição quer é que haja "explosões", etc., etc. Não me cito porque entenda que é preciso qualquer espécie de perspicácia notável para perceber o que já estava então a acontecer, até porque estamos também no domínio da self-fulfilling prophecy, mas por causa dos "sinais". Os sinais já são evidentes há muito tempo e alguma coisa, por pequena que seja, já devia ter sido feita e alguma pensada para os tempos mais difíceis que ainda não vieram. Porém, o Governo negou a realidade, ignorou os sinais, nada fez, nada faz e nada fará. Vai a caminho de um lindo enterro, cujo custo vamos pagar com juros.

Saímos de uma semana em que a lei e a ordem desapareceram das nossas estradas, com o sentimento crescente dia a dia da impotência e da apatia do Governo, com um primeiro-ministro balbuciante, ele que é tão lesto a falar do que lhe convém, e a crescente sensação de insegurança a penetrar mesmo a couraça patriótica do Euro 2008. No meio da exibição obsessiva do circo futebolístico, alimentado a milhões de euros pelo Governo na televisão "pública" que devia ser "diferente" e é ainda mais "igual" , as pessoas aperceberam-se que o país estava nas mãos dos piquetes do Carregado e que era mesmo melhor começar a comprar mantimentos e a fazer reservas de combustíveis, como se estivéssemos em vésperas de uma guerra civil ou no PREC, que é a mesma coisa. Só em criança eu me lembro de ver a minha mãe a encher a dispensa em 1958, porque era o que se deveria fazer quando havia risco de "revoluções" e, na sua memória portuense, havia o precedente de 1927. "É que pode não se poder ir à rua por causa dos tiros..."

Quando José Sócrates disse que o Estado estava "vulnerável" para lidar com a paralisação das transportadoras, ele só disse metade da verdade. É verdade que o nosso Estado é "vulnerável" a muitas coisas, a começar pela corrupção, mas, acima de tudo, quem esteve "vulnerável" foi o seu Governo, que deu um espectáculo de incompetência e negligência praticamente em todas as áreas sensíveis que estavam em causa. E mais: foi perigoso para todos nós, para a nossa segurança. Foi e é, porque a "explosão" ainda não acabou.

No debate parlamentar, de que só vi fragmentos, Sócrates fez o seu exercício habitual daquilo que, há muito, chamo o "argumento hegeliano": tudo o que aconteceu tem muita força porque aconteceu e, se aconteceu, é porque deveria ter acontecido". A versão governamental é sempre a mesma, as coisas aconteceram como deviam ter acontecido e só uns mal-intencionados da oposição pensam que podia ser de outra maneira. De outra maneira seria sempre pior, haveria mais caos, mais perturbação, mais riscos, se não fosse a "firmeza" e o "diálogo" governamental. Como as coisas não ocorreram "de outra maneira", o argumento hegeliano que se baseia na força do "acontecido" é excelente para justificar o poder. É, aliás, para isso que ele existe, para dar ao poder uma blindagem face à realidade, parecendo alicerçar-se na própria "realidade".

A polícia não actuou? Fez bem, porque, se actuasse, tinha sido uma catástrofe e não haveria acordo. O Governo demorou tempo de mais para negociar? O Governo demorou o tempo que foi preciso para haver acordo. Os "transportadores" violaram a lei? É menos importante do que o facto que a paralisação acabou porque o Governo soube "dialogar". Houve desacatos e violências? Houve, mas foram poucos em relação ao que poderia ter havido, caso o Governo não fosse "dialogante". E não se sai disto, o que aconteceu tinha que acontecer, ou melhor ainda, devia acontecer como aconteceu porque só assim "houve acordo". Pelo caminho ficou um morto e vários feridos, mas isso é pouco importante face ao caminho inexorável dos acontecimentos conduzidos pela mão preclara do Governo do PS.

Aliás, a vantagem do "argumento hegeliano" é que dá para tudo e para o seu exacto contrário. Hoje, assenta no acordo obtido na noite tumultuosa da reunião da Batalha, mas, se não tivesse havido acordo, a linha de argumentação do Governo seria a mesma. Se o acordo tivesse falhado e o Governo viesse para a rua com as polícias e o Exército, prendendo e reprimindo à bastonada, podem ter a certeza que o primeiro-ministro chegaria ao Parlamento a dizer que isso só demonstrava a "firmeza" do Governo, que tinha seguido a via do "diálogo", mas que encontrara uns desordeiros pela frente, pelo que a ordem pública tinha sido garantida. E que o seu Governo fizera exactamente o que devia fazer, no tempo em que o devia fazer e na forma em que o devia fazer.

Claro que o Governo não quer ouvir as perguntas que acertam na sua incompetência e fraqueza como setas em alvo próximo. Por exemplo: que medidas tomou desde o início do conflito para garantir os abastecimentos estratégicos, como o combustível para o aeroporto? Nada. O que é que fez para evitar rupturas de fornecimentos que podiam paralisar quase toda a actividade económica? Nada. O que é que fez para acautelar o escoamento dos produtos perecíveis? Nada. Que garantias de liberdade de circulação deu aos muitos camionistas, às muitas empresas de transportes, que não queriam participar na paralisação? Nenhuma. Que garantias nos deu, a todos, que o Estado não negoceia com quem está a violar a lei, não negoceia com quem está a usar a força para o intimidar, enquanto não for reposta a legalidade, o que todos pensavam ser uma boa doutrina para evitar que haja benefício do infractor? Nenhuma. Não só não deu garantias como premiou quem o fez, sentando-se à mesa diante da televisão com os piquetes ad hoc, ajudando a descredibilizar quem tinha elegido como parceiro, a ANTRAM, e premiando os métodos usados.

É que a alternativa não era, como o Governo pretende para nos enganar e justificar a fraqueza, entre o laxismo e a bastonada. Só o seria se o Governo não tivesse um plano, se o Governo não fizesse aquilo para que foi eleito, governar. É que desde início podia ter um plano e não tinha nenhum. Podia ter fechado os olhos à ilegalidade dos piquetes, permitir que eles abordassem os motoristas que não queriam paralisar, mas não permitir mais nada que não fossem assobios e vaias aos que passassem. Mas não. Permitiu a ocupação da via pública, a intimidação com ameaça, as pedradas e os incêndios. E fez ainda pior, permitiu que esses comportamentos de flagrante ilegalidade se fizessem diante dos olhos e ouvidos da GNR, cuja autoridade minou diante dos camionistas e diante de todos os que viam na televisão um guarda passivo enquanto os membros dos piquetes abriam à força as portas das cabinas para ameaçar os motoristas de que, alguns metros a seguir, haveria pedradas, pelo menos. Apesar de todas as violências e de crimes públicos estarem a ser cometidos diante das autoridades, ninguém foi preso, como no caso dos Verdeufémios e da destruição do milho transgénico, apenas foram "identificados". Como é que podia ser de outra maneira, se aqueles homens estavam sentados à mesa com o ministro, se naqueles dias eram eles que impunham a lei da força?

Aquilo a que assistimos esta semana foi um bem triste retrato da impotência, da negligência e da fraqueza. Mas foi só um início. Esta caixa é como a de Pandora, abre-se e depois não se fecha, e nem mil anões da propaganda, nem o poderoso Hegel, a conseguem fechar.

(Versão do Público de 13 de Junho de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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