ABRUPTO

24.6.08


O JOGO QUE PERDEMOS SEMPRE



Os portugueses regressam a casa do mais improvável dos países, a Suíça. Numa atitude típica da excitação patriótica à portuguesa, sempre ao lado do mais importante, a Selecção Nacional perdeu o único jogo que não podia perder. Não, não foi com a Alemanha, foi com a Suíça. O único jogo que tinha importância, para além da venal importância de qualquer jogo, aquele que dizia muito aos nossos emigrantes para além do palavreado sobre como os suíços nos adoram e "adoptaram" a Selecção nacional como a sua Selecção B, quando não a A. É destas ilusões que vivemos e, negligentes connosco próprios, fomos perder com a equipa dos patrões dos nossos emigrantes, dando a todos uma pequena humilhação com que voltaram no dia seguinte às obras, aos restaurantes, às limpezas, à Suíça real que olha para nós lá com a sobranceria com que nós olhamos para os moldavos cá.

Os portugueses regressam a casa sem vontade nenhuma de a ver não só porque a festa acabou mais uma vez - é sina das festas estarem sempre a acabar -, mas porque esta festa já tinha alguns ingredientes de última festa, aquela que nos filmes americanos antigos fazia voltar a casa o herói de smoking amarrotado e a rapariga do herói com os laços de organdi do vestido deslassados. Cada um para o seu lado. E não cantam à chuva. Entregam-se ao ciclo das estações, para não se entregarem ao muito mais cruel ciclo do fim do mês. A Primavera acabou, com o seu cortejo de traições, e o Verão implanta-se agora com a modorra dos sentidos e a estabilidade dos hábitos. O Outono está ainda longe mas ninguém quer pensar nele. Mas há, há Outono e há Inverno e lá se irá chegar.

Estes ciclos das estações são importantes, as pessoas agarram-se a eles porque as fazem ultrapassar o ciclo do ordenado no fim do mês. Os taxistas não se enganam e olham sempre para os meses de forma sábia. Há mais trânsito, chegou o fim do mês, há pouco trânsito, as pessoas já gastaram o dinheiro. Nas conversas surge sempre o lugar da crise: há mais espaços de estacionamento pago vazios, há menos gente a comprar peixe nos supermercados, há menos de tudo. É certo que o Sol brilha lá fora e já falta pouco tempo para o Algarve, mas, nos nossos dias, não é a Lua que é enganadora, mas o Sol.

Os nossos bons portugueses que voltam do seu conto de fadas suíço na abóbora e com os ratinhos, e sem qualquer esperança de que o príncipe os vá buscar a casa com o sapatinho certo, regressam ao mundo das más notícias, que lhes foram poupadas por essas "notícias" mais importantes, como seja perguntar à senhora pintada de índia na rua: "Então quem acha que vai ganhar"? "E por quantos vai ser"? Etc., etc. Tudo coisas de profundo conteúdo noticioso. Agora, em casa, lá têm que penosamente aparecer notícias nos noticiários, feitos em redacções que já não sabem fazer muita coisa para além do futebol e têm que lidar com o quotidiano aumento do petróleo, com o aumento dos bens essenciais, entrecortados pela dose habitual de doenças e "casos humanos", quase sempre pouco felizes. O escapismo atira-nos muito para cima, depois a queda é mais brutal.

Os nossos bons portugueses a quem foi dito que o seu Portugal tinha a glória de uma "marca" de sucesso e que, como "marca", estava entre as melhores do mundo, percebem agora como é fácil passar da glória à desagregação, à recriminação, ao quotidiano exercício de maledicência. A culpa entra pela porta grande e nunca é nossa, é sempre dos outros.

Os nossos bons portugueses regressam também a um país que não tem governo. Já há algum tempo que o Governo não governa, embora ainda muita gente não se tenha apercebido isso. Algures no meio das primeiras dificuldades, desistiu, passou a fazer de conta. Não é que tivesse tido vida fácil, mas a "vulnerabilidade" de que falava Sócrates é em primeiro lugar a sua. Enquanto podia fazer de "menino de ouro", como diz o título da sua hagiografia, tudo bem. Com tudo a seu favor, maioria absoluta, cooperação institucional do Presidente, oposição paralisada e descredibilizada, o Governo Sócrates vai chegar a 2009 com os mesmos (ou piores) indicadores que recebeu em 2005. Com excepção do controlo das contas públicas, que, frágil que seja, é mérito do Governo, tudo o resto está pior: desemprego, crescimento económico, inflação, empobrecimento. E não só está pior como a inacção do Governo o vai tornar pior, porque não são só os factores externos que se agravaram. As causas internas contam muito, porque, como Barroso disse da União Europeia depois do "não" irlandês, não há Plano B. Também cá não há Plano B e ficamos na dúvida se chegou a haver Plano A. Os portugueses, após anos de dificuldades, perderam toda a esperança e este é o eleitorado mais difícil de todos, para o Governo e para a oposição.

Lá está o pessimista, pode-se ouvir em fundo, embora um fundo cada vez mais desmaiado. Claro que está, tem que estar, é obrigado a estar, porque só no Olimpo é que se pode ignorar o estado de perplexidade dos portugueses, um caldo de cultura que tende a dar asneira. Sem o identificarmos estamos condenados a ficar manietados dentro daquilo a que alguns chamam o "sistema" e que, numa análise mais fina, se percebe que é a democracia. E, no entanto, só ela nos salva, a democracia, só o voto é a "arma do povo" para usar uma velha fórmula, mesmo que o usemos sem grandes esperanças.

(No Público de 21 de Junho de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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