ABRUPTO

1.6.08


CONCHAS, PEDRINHAS, PEDACINHOS DE OSSOS



Ler jornais é uma actividade especialmente frutífera se for feita segundo as regras da entomologia, a ciência que estuda os insectos. Ou dito de outra maneira, fazendo uma colecção de coisas pequenas que existem no meio da superfície das grandes. Como dizia o nosso bom chinês Camilo Pessanha:
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuamente cor-de-rosa,

(...)

Róseas unhinhas que a maré partira...

Dentinhos que o vaivém desengastara...

Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
Porque, enterrados no espaço das enormes trivialidades, no lençol da vacuidade reinante, lá estão as coisas para ficar, aquelas com que se aprende sempre, os sinais do que muda ou não muda. Eu faço uma colheita todos os dias, com uma rede muito fininha, para apanhar os "pedacinhos de ossos", o que me leva a usar a maior quantidade de diminutivos que me lembre de usar em meia dúzia de frases. Mas é de facto um trabalho de pinça, lupa e atenção, parecido com o que os velhos filatelistas fazem para medir denteados, observar filigranas, ou encontrar a marca secreta na filatelia chinesa que distingue o selo raro do vulgar. China duas vezes, hum... é para desconfiar que isto é feito para tempos muito lentos, muito lentos mesmo.

Aqui vão alguns dos "dentinhos que o vaivém desengastara", cada um na sua caixinha da classificação:

MUDAR CUSTA MUITO: corticeiros e conserveiros deram o seu contingente de bons anarquistas e sindicalistas revolucionários na I República. Mas para além da revolução queriam duas coisas: closed shop, ou seja, o controlo pelos sindicatos do acesso ao trabalho, e que os homens ganhassem mais do que as mulheres. Suspeitavam, como cem anos de vida laboral vieram a confirmar para muitas profissões, que o acesso das mulheres ao seu mercado de trabalho significasse menores salários e degradação da posição "social" da sua profissão. Cem anos depois, no Portugal de 2008, finalmente se anuncia, com adiamento para mais oito anos, para 2015, o fim das desigualdades salariais entre homens e mulheres corticeiras.

O QUE ESTÁ A MUDAR: cada vez mais a nossa natalidade é salva pelos emigrantes. Em 2007, quase dez mil crianças portuguesas são pretinhas, amarelas, louras, têm os olhos em bico, e nasceram a ouvir crioulo, russo, romeno, moldavo, chinês, e a serem recebidas com diferentes rezas, mezinhas, altares, igrejas e mesquitas. Sejam bem-vindas a este nosso Cafarnaum ocidental que cada vez mais depende delas para não encolher. 2007 foi também o primeiro ano de saldo negativo entre a natalidade e a mortalidade desde que a pneumónica matou dezenas de milhares de portugueses em 1918.

EFEMÉRIDES PARA NÃO COMEMORAR: 1918 é um ano pouco propício para se lembrar porque não só por cá passou a pneumónica, levou o nosso Amadeo de Souza-Cardoso entre outros, mas também porque foi o ano da greve geral, da carestia de vida, dos assaltos às mercearias e do início do nosso peculiar "bolchevismo". Tanta coisa parecida com 2008. Esquece.

UMA ESTREIA: uma bola de futebol entrou no Processo Casa Pia pela mão de Carlos Cruz e foi mandada examinar pelo "advogado de Bibi", assim é designado o ilustre causídico que defende o sr. Carlos Silvino. Já só faltava aparecer uma bola no tribunal e ir parar ao laboratório científico da PJ, deve aliás ter graça a análise. Como a cabeça dos portugueses tem sido nos últimos tempos substituída por uma bola, convém ter muito cuidado em "escalpelizar" a dita bola, não vá ela vir de um telespectador da RTP.

JÁ NÃO HÁ RESPEITO: o "capitão de Abril" Vasco Lourenço parece que esteve para entrar em vias de facto com o distinto sportinguista Dias Ferreira por este lhe ter dito que a "que aquilo [uma assembleia do clube] não era uma assembleia do MFA e que não lhe dava lições de democracia." Um sócio que estava perto descreveu a resposta épica do "capitão de Abril", que "caminhou entre as poucas cadeiras que o separavam do conhecido causídico, que meio pavilhão temeu que tão ilustres sportinguistas chegassem a vias de facto". Mas não, ficou-se "pelo gesto forte e a palavra dura" e depois saiu da sala. Já não há respeito pelo 25 de Abril. Classificar em "sinais preocupantes" e enviar ao senhor Presidente da República para celebrações futuras.

AS TRADIÇÕES AINDA SÃO O QUE ERAM: Luís Fazenda é um deputado do BE subestimado face ao fogo calvinista - onde é que já ouvi isto? -, que arde sempre na palavra de Louçã. Savonarola talvez ficasse melhor do que Calvino, mas fica para outra ocasião. Fazenda vem da UDP, é mais clássico, mais sólido e mais fino. Veja-se a boa resposta que deu a Alberto Martins, que, sem imaginação e fora do contexto, lhe atirou com uns "uivos", sem evitar, numa de estereótipo antifascista, citar o Aquilino, fora aliás do contexto. Disse Fazenda com saber e elegância: "Numa concepção ontológica, animal é todo aquele que tem animação, e nesse sentido o senhor deputado é tão animal como nós." Tiro no porta-aviões.

NOVAS PROFISSÕES: eu, se fosse consultor de profissões com emprego absolutamente certo, não teria dificuldade em aconselhar os pais e mães dos meninos sobre as escolhas mais seguras. Por exemplo, aprender maltês, uma língua oficial da União Europeia, com um deficit aflitivo de tradutores credenciados. Mas há mais, contrariando quem se queixa que o Governo não ajuda ao emprego. Ajuda, ajuda, por exemplo, sendo-se "consultor de segurança alimentar", um bom exemplo de um novo tipo de empresas que proliferam à custa da ASAE. As que já existem pretendem, como os nossos corticeiros e conserveiros do início do século, que o Estado lhes garanta uma espécie de closed shop. Querem leis que regulamentem o exercício da profissão: "Estamos num mercado em que qualquer empresa pode exercer esta actividade, não precisa de ter condições especiais", afirmou o presidente da Associação Nacional das Empresas de Segurança Alimentar (ANESA). Querem as "condições especiais" para impedir que "os laboratórios, empresas de higiene e segurança no trabalho, de produtos, empresas de comercialização de produtos alimentares" entrem no sector. O mercado parece lucrativo à custa do medo da ASAE. Uma senhora coordenadora da Associação de Produtores dos Suínos de Raça Bísara queixava-se de que lhes pedem 500 euros para fazer "um plano de segurança alimentar" e que tanto lhes faz que os produtores dos "Suínos de Raça Bísara" sejam grandes ou pequenos, o preço é sempre o mesmo.

QUOTIDIANO: em Odivelas, um russo e dois ucranianos mandaram um taxista seguir para o metro do Senhor Roubado. Quando passavam pelo Vale do Forno, atacaram-no com gás pimenta para o roubar. O taxista teve sorte, escapou com vida, e conseguiu dar o alarme a tempo. A PSP fez tudo certo e apanhou primeiro dois dos homens e depois o terceiro, à sapatada porque resistiu. Estou a vê-los a todos, os eslavos com o seu treino militar, ou mafioso-militar, correndo rápidos, T-shirt, calças de ganga e sapatilhas, pelas ruas de Odivelas, com a nossa nova geração de polícias, imaginando-se numa cena típica dos Cops, atrás. E não é nada mau que seja assim, a ecologia do crime é cada vez mais parecida. Se alguém, há vinte anos, dissesse que em Odivelas a guerra fria entre o Leste e o Ocidente iria passar pelas suas ruas-dormitório, ninguém acreditava.

*

E podia continuar, dia a dia, jornal a jornal, a ver o que muda, e o que nada muda. Move-se? Claro que se move, mas não é onde nós queremos que se mova. Fica lá de pedra e cal? Fica, mas fica onde nós queríamos que mudasse. Não há nada como os coleccionadores para ouvirem o ruído do mundo, ordenado nas suas caixinhas chinesas...

(Versão do Público de 31 de Maio de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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