ABRUPTO

25.5.08


A GUERRA DOS PAVILHÕES DA FEIRA DO LIVRO



A guerra civil entre editores que atrasou o início da Feira do Livro é um típico sinal da resistência à mudança no mercado editorial e, como todas as guerras modernas, é total, afectando militares e civis, ou seja livreiros, editores e compradores de livros. Para já, atrasou o início da feira, o que custa dinheiro a todos, e prejudica quem gosta de livros e tem menos tempo para lá ir.

Essa guerra tinha esquerda e direita e centro, radicais e moderados, tinha pequenos e médios (que são, fora de Portugal, muito pequenos) contra os grandes (que, são fora de Portugal, muito médios), ela incluía sinais exteriores de riqueza, sinais exteriores de pobreza, igualitarismo quanto baste, lamentos contra a mudança do mundo, forte nostalgia do passado, quando este era "bom", elogios da virtualidade da pobreza "muito limpinha", como nos livros escolares de Salazar, face às garras da ganância plutocrática do capitalismo neoliberal da economia de casino - ufa! -, que, para mal da cultura, dos criadores e dos livros, se abateu agora sobre a edição para destruir a "verdadeira" cultura, a que não tem mercado porque não "transige" com ele e que é obrigação dos contribuintes sustentar. Só falta meter ao barulho o Presidente Bush, mas, se durasse mais algum tempo, também apareceria à colação, mais o Obama.

A questão é típica, somos todos iguais, vestidos com a mesma bata, ou a mesma capa e batina, ou somos diferentes e uns vêm de farrapos e outros de Boss e de Armani? Temos todos os mesmos velhos pavilhões ou a miséria dos ditos vai ser evidente face ao luxo modernista do novo monstro editorial, a Leya? A nossa resposta típica é a de exigir uma lei, uma postura, uma ordem burocrática, neste caso à Câmara Municipal de Lisboa, que é quem paga a conta, que imponha a farda, a bata, a batina, para refrigério dos pobres e humilhação dos ricos. Pelo menos durante os 15 dias da feira somos todos iguais, "eles" podem ter o dinheiro, mas não "mandam" em nós. Viva a APEL, abaixo a UEP e morra a Leya!

O problema também é político strictu sensu. Quando a Leya comprou editora a seguir a editora, a começar pela grande editora criada pelo PCP, a Caminho, e a Dom Quixote, que também tinha nascido, há muitos anos, à esquerda, houve um sentimento de apossamento indevido, de ver o inimigo de classe, o capital predador, a conspurcar águas que se pensava serem propriedade natural da esquerda, que, como se sabe, é dona da cultura, da criatividade, da literatura e da arte. Foi pena não ser a Prisa a comprar, com o seu Cardeal socialista, porque então estaria tudo muito bem. Mas foi o Conde, que compra empresas, saneia-as, expulsa os trabalhadores, impõe critérios "comerciais", um insulto aos livros, e depois vende-as já compostinhas, magras e a dar lucro.

Claro que o aparecimento de um monstro editorial, que ainda por cima "tem" o Saramago, o Lobo Antunes e a Margarida Rebelo Pinto, preocupa muita gente, que gosta pouco do mercado e da competição e, sempre que ela se torna mais árdua, se lamenta do bullying. Presos à igualdade dos pavilhões, o que os editores que se opunham à "roupa nova" da Leya não querem é a inevitável e saudável mudança em curso do mercado livreiro, concentração e uniformização por um lado, mas também possibilidade de diferenciação e de qualidade por outro. Em vez de olharem para as enormes oportunidades do segundo efeito, eles querem é impedir o primeiro, todos os dias perdendo-se em queixas ao Estado, que é para onde se vira sempre a "cultura", para impedir a concorrência em nome da sua superioridade e intocabilidade.

O problema é que tudo isto é uma ilusão, porque eles de facto já mandam em "nós". O que não pode sobreviver é um mundo editorial pouco profissionalizado, pequeno mas sempre a sonhar ser grande na base dos subsídios e compras estatais, usando a intangibilidade da cultura e do livro, para manter uma edição muitas vezes má, invadindo o mercado e as livrarias do mesmo tipo de produtos que a Leya vai fazer, só que em muitos casos em pior. Traduções más, capas todas iguais, livros pouco cuidados já se fazem há muitos anos por todo o lado, tendo destruído editoras que no passado dominavam muito do mercado livreiro. A decadência da Europa-América como editora é um exemplo típico.

Na pior das hipóteses, a Leya vai concentrar e dar força ao livro mau, "comercial", mas não me é líquido que seja assim. No entanto, para efeitos de argumento, pode servir. É de mau augúrio o insuportável rodriguinho grandiloquente em que a Leya nos explica que existe "com a ambição de despertar as múltiplas geografias da alma lusófona (...) uma aventura escrita a muitas mãos, culturas e geografias (...) a tarefa de levar o português aos cinco continentes, para transformar o sonho em palavras escritas, e a alma lusófona em linguagem universal", a que acrescenta depois umas coisas meio yuppies sobre "uma nova cultura empresarial" e a "marca", em vez de nos dizer pura e simplesmente que veio para ganhar dinheiro com os livros, o que é normal, aceitável e desejável. Com esta retórica, poupem-nos.


Mas, com Leya ou sem ela, até mais com Leya do que sem ela, nem por isso deixa de existir um enorme potencial para a diversidade, para a pluralidade, para a qualidade e para a inovação, que exige muitas mudanças no mundo das pequenas editoras, essencialmente uma aposta na qualidade que, salvo raras excepções, não tem existido. As livrarias, que por sua vez também estão ou deviam estar a mudar, estão sobrecarregadas de traduções malfeitas de livros estrangeiros para consumo rápido e de livros portugueses, romances por exemplo, tão maus, tão maus que se percebe que só vendem porque o seu autor/autora aparece na Caras, na Nova Gente, ou nos programas da manhã. Tudo isto sem Leya, antes da Leya.

Para que haja a mudança necessária, e, sejamos justos, algumas editoras já contribuem, criando nichos de mercado sólidos, esta só se poderá impor quando houver um banho de realidade, e é isso que os editores não querem com esta guerra dos pavilhões normalizados na Feira do Livro. Um dos aspectos desse banho de realidade é compreender que muitos dos livros que são publicados não o deviam ser. Uns porque são de facto maus, maus romances, maus livros de poesia, coisas que não passariam numa comissão editorial de qualquer pequena editora britânica, outros porque não tem sentido serem editados para um mercado comercial, mas apenas existirem em edições universitárias ou em linha na Rede. Aliás uma das revoluções na edição, no sentido de democratizar a edição, podia e devia ser a publicação em linha, só que há muito conservadorismo e presunção em querer no papel, o que não justifica os custos do papel. Aliás, o teste da leitura em linha, que ainda de uma forma imperfeita acaba por ser feita já nos blogues, é fundamental para um mecanismo de selecção que no passado se fazia com as edições de autor ou de pequenas editoras.

Claro que isto também não muda se não houver crítica para além da complacência de um mundo em que se conhecem todos, ou do amiguismo tribal que vai dos jornais para os blogues e vice-versa. A nossa edição é má também porque não existe verdadeira crítica que ajude a distinguir entre o que de mau e de bom se publica, punindo políticas editoriais de má qualidade. É aqui, aliás, que mais se nota a claustrofobia por pequenez, porque, num mundo em que os bens são escassos, criticar tem custos, e a independência é difícil.

Se há sector em que eu acho que falta muito o mercado, é no da cultura. Oh, heresia das heresias, misturar comércio e arte! Acredito eu aqui no mercado? Em matéria de cultura, acredito absolutamente, acho que faz uma falta abissal, imensa, gigantesca, um mercado duro, impiedoso, uma "mão invisível" poderosa. Génios na mansarda, escrevendo obras-primas que ninguém publica porque não são comerciais, isso está bem como mito romântico, mas nem nesses tempos românticos era bem assim. Quem fica a perder com as mudanças no mercado editorial é uma certa mediocridade mediana, com presunções culturais, que faz muito da nossa vida literária e da clientela da cultura, não são nem os maus com mercado, nem os bons com qualidade.

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© José Pacheco Pereira
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