ABRUPTO

18.5.08


FUTEBOL,
FUTEBOL,

FUTEBOL, FUMEI, PEQUEI, VOU DEIXAR DE FUMAR, A ESMERALDA ENTRE O PAI AFECTIVO E O PAI BIOLÓGICO, FUTEBOL, DIRECTO DO ACIDENTE NA A1 QUE PROVOCOU TRÊS FERIDOS, OS PAIS DA PEQUENA MADDIE, FUTEBOL, TENHO UM CANCRO-TIVE UM CANCRO - VOU TER UM CANCRO,
o resto, FUTEBOL, FUTEBOL, FUTEBOL



Este título podia continuar por todas as páginas do Público. Se o Público fosse feito como um "noticiário" televisivo, o que felizmente não é, todas as suas páginas seriam variantes disto, com mais de mil futebóis e mais crimes, doenças e acidentes. Na página 15, haveria uma pequena coluna com os números trágicos da nossa economia; na página 24, uma faixa minúscula, como a publicidade mais barata, num fundo de página, diria que morreram na China 50.000 pessoas num terramoto; na página 40, perdida numa notícia de página inteira de um treino do Vitória de Guimarães, completa com fotos e uma entrevista exclusiva com o treinador sobre como a equipa está "entrosada", e se não houver "as pressões vindas do sistema", ganhará um jogo qualquer com "tranquilidade" (esta parece-me que é de outro, mas não tem importância), uma declaração do Presidente da República sobre o Kosovo, onde temos soldados nossos.

Em todas as páginas do jornal haveria uma mensagem subliminar: pedimos desculpa ao leitor por ter perdido vinte e cinco linhas do nosso precioso espaço, para falar de umas minudências que não dão audiências, rima e é verdade, como a economia, o preço dos passes sociais, as calamidades nos países exóticos, as malfeitorias do Governo, quando não são engraçadas ou não parecem vindas do sítio dos Fumadores Anónimos. O sítio do noticiário político são os programas de humor, o sítio de "sociedade" são os programas da manhã e os do jet set, o sítio da economia é o Preço Certo. Voltemos pois ao directo da conferência de imprensa do director de futebol do clube, que nos vai anunciar o "plantel" para o jogo de sábado.

Eu sei que já escrevi sobre isto, a mais quixotesca das minhas actividades, ainda pior do que a do PSD, mas isto é mais grave do que se pensa. É um sinal de descontrolo cívico, de atraso político e social, de retrocesso da nossa democracia e da nossa vida pública. Não é só na economia que estamos a andar par atrás, é na cabeça. A cultura da irrelevância está a crescer exponencialmente e todos já esperam que o mesmo aconteça nos próximos meses, em que mais uma vez o país vai parar porque há um Campeonato.

Na última semana, que é igual às últimas semanas, aos últimos meses, aos últimos anos, todos os telejornais em directo foram interrompidos, eu diria mais, foram enchidos, com sucessivas e extensas declarações em directo, sobre as decisões do Conselho Disciplinar da Liga com sanções sobre clubes e dirigentes desportivos, pelo seleccionador nacional anunciando o "plantel", pelo novel director de futebol do Benfica anunciando-se e anunciando umas medidas para o seu clube. A isto acrescenta-se o número de vezes em que quer o "serviço público", quer as privadas dão jogos em horário nobre, atirando as notícias para algures, como se em particular o "serviço público" não tivesse aí obrigações. A RTP é a televisão que mais falta a essas mesmas obrigações, que justificam a superioridade moral do "público" e que, pelos vistos, só serve para receber os muitos milhões que os contribuintes pagam. Mas não é só as vezes em que directos do futebol são o telejornal, é que durante três, quatro dias não nos conseguimos ver livres daquilo. Até aparecer outro directo mais saboroso, temos que assistir a "noticiários" que repetem ad nauseam as mesmas imagens, as mesmas declarações, seguidas por milhões de palavras "escalpelizando" os "factos", em tudo o que é programa de actualidade pela noite fora. O circo está montado na nossa cabeça e nele fazemos o papel do urso amestrado ou dos macaquinhos. Nem sequer o do palhaço pobre.

O mundo agressivo e brutal do futebol, com a sua pedagogia de grosseria e violência, ordinário e vulgar, movimentando poderosos interesses políticos, nacionais, autárquicos e regionais, servindo uma economia paralela, que para nosso mal ainda é a única que funciona em muitos sítios, imerso em corrupção, não aflige nem preocupa ninguém. A começar pelos nossos deputados, que dão a caução institucional da Assembleia da República a um dirigente desportivo acabado de sancionar por "corrupção tentada" e que saía de uma acareação num tribunal. Políticos e dirigentes desportivos ajudam-se mutuamente para impulsionar carreiras políticas populistas que o mundo do futebol protege e apoia, e parecem a única coisa que verdadeiramente mexe em Portugal, junto com os negócios da "alta". Ainda um punhado de inocentes pensava que isso era uma pecha do salazarismo, quando meia dúzia de palavras e imagens de cinco minutos, no fim dos telejornais, passavam por ser um excesso e onde um filme como O Leão da Estrela se limita a descarregar sobre o tampo de uma mesa aquilo que hoje obriga a operações paramilitares de contenção de turbas violentas. Não, não andamos para a frente, andamos para trás, para o país chamado Futebolândia, para a futebolização plena da nossa vida pública.

Mas não é só o futebol, é tudo o resto. É o mundo das telenovelas, com o seu sangue, suor e lágrimas, transformado em "casos", o caso Maddie, uma coisa abstracta e virtual, sem corpo real, já sem a violência do crime, já transformado numa soap opera de plástico, o caso Esmeralda, uma competição absurda à volta de uma menina imaterial, tão abstracta e morta na virtualidade como a "pequena Maddie", onde todos os dias uma inovação aparecida depois do caso Casa Pia, os "pedopsiquiatras", divulga relatórios que deviam ser confidenciais em tempo real, para movimentar as celebridades que vão beijar o sargento e demonizar o pobre pai que só é "biológico", com a justiça a claudicar perante a pressão dos tablóides em que se transformou muito daquilo que conhecíamos como "comunicação social".

E depois o estendal dos acidentes e doenças. Os acidentes são hoje a única coisa que mobiliza directores de informação, pressionados pelo controlo de custos, a atirar a correr para Freixo de Espada à Cinta o "carro de exteriores" à compita com outros "carros de exteriores", para mostrarem camião virado ou, melhor ainda, um autocarro, ou, se andarem depressa, um ferido a ser desencarcerado, ou um morto na berma. E então se houver crianças feridas ou mortas, melhor ainda para as audiências.

Depois há um stock de "notícias" para os intervalos do futebol, as reportagens sobre doenças, de preferência raras, de preferência com "casos humanos" apensos, de preferência com imagens fortes como a de um buraco feito por uma broca na cabeça, tudo interessantes matérias para prender o olho dos ouvintes no meio do jantar. Médicos, assistentes sociais, pedopsiquiatras ou pedopsicólogos, ex-polícias da Judiciária, são profissões com garantia de sucesso televisivo, como também astróloga, hortelão urbano, bruxa e ervanário popular explicando como a sua erva é mais eficaz do que o pau de Cabinda.

A cultura da irrelevância está impante como nunca, espectáculo e pathos brilham no sítio que anteriormente ainda era frequentado, de vez em quando, pela razão, pelo bom senso, pela virtude. Esta é, obviamente, a melhor comunicação social, a melhor televisão para os governos, e o actual cuida bem que não lhe falte dinheiro para as suas quinhentas horas de futebol. Compreende-se: a bola não pensa, é para ser chutada.

(Versão do Público de 17 de Maio de 2008.)

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Há vinte e muitos anos, quando andava na faculdade e só havia dois canais, eu, anarquista, sonhava com um programa humorístico na RTP, a simular telejornais sem interesse nenhum, com directos da estação de Tormes, na linha do Douro, para anunciar que o relógio da gare tinha parado. O locutor falaria emocionado, no tom próprio dos grandes eventos, enquanto as imagens se fixariam longamente nos ponteiros mortos.

Nem nas minhas mais delirantes fantasias me passou pela cabeça que outros mais imaginosos e poderosos haviam de tornar realidade, poucos anos depois, os meus sonhos. E levá-los para os telejornais a sério.

(António Cardoso da Conceição)

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Sucede que a realidade transmitida pela televisão - verdadeiro receptáculo da cultura de massas e principal fonte de informação para a maioria da população que não lê jornais - é ainda mais triste do que aquilo que aparenta; ela é o verdadeiro mostruário do estado de mediocridade acéfala em que a nossa sociedade irrefutavelmente mergulhou. Os noticiários dos canais televisos têm pouca ou nenhuma informação, e a pouca existente é amiúde inócua, assemelham-se mais a vulgares programas de entretenimento adequados ao gosto das massas populares, sedentas de "sangue", de mais um caso de uma qualquer criancinha desaparecida (num mundo onde por dia morrem 30 000 crianças; mas isto já não é notícia porque elas não são abastadas, loiras, bonitas e filhas de um casal inglês), que "vibram" com a última "conquista" amorosa de Cristiano Ronaldo, que se "alimentam" da tragédia alheia numa espiral voyeirista.

A última semana constituiu um bom exemplo: o país "parou" devido ao facto do primeiro-ministro ter fumado um cigarro; os "preparativos" e a antevisão da final da taça de Portugal foram tratados como se tivessem a relevância de uma visita do Papa Bento XVI; Pinto da Costa ou Carolina Salgado devem de ocupar mais tempo nas televisões do que qualquer político português, tirando obviamnete o primeiro-ministro na RTP, nos seus sucessivos e inefáveis momentos Chávez. Enquanto o país televisivo perde o seu tempo com futilidades e desgraças avulsas, existe uma tragédia brutal na China; outra ainda pior na Birmânia; uma guerra no Iraque e outra no Afeganistão; o caos político no Líbano; a ameaça iraniana - em relação a Israel; as decisivas eleições nos EUA; as directas no PSD; uma crise social e económica grave; uma economia paralítica que vai ter mais um crescimento medíocre este ano - 1.5%; o aumento exponencial do petróleo, que esta semana chegou aos 128 dólares em Nova Iorque; o aumento generalizado dos preços dos bens alimentares nos mercados mundiais; a aprovação de um acordo ortográfico obtuso e inútil; a actuação "estalinista" da ASAE; a recessão na América e a crise económica espanhola; a inexorável ascensão económica e política da China e da Índia; o reforço do poder de Putin na Rússia, etc, etc, etc. As verdadeiras notícias estão quase totalmente ausentes dos ecrãs de televisão, que apenas perpetuam a boçalidade e ignorância da maioria dos espectadores.


(João Neves)

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Acho completamente indecoroso como as televisões silenciam as catástrofes humanas que estão a ocorrer neste preciso momento na Birmânia e na China que, em número de vítimas afectadas, ultrapassam largamente as vítimas do tsunami que afectou o sudeste asiático à três anos. Por isso não me calo, quando vejo dar mais importância ao comportamento do primeiro-ministro dentro de um avião ou quem vai ser o futuro presidente do PSD do que o sofrimento sentido por quase 10 milhões de pessoas que ficaram sem nada.

Afinal, até onde vai a hipocrisia da comunicação social portuguesa? Cada vez mais vejo o meu país a dar passos para trás quando comparado com outras nações: a BBC tem repórteres em directo 24 horas por dia, a TVE de Espanha foi a primeira televisão ocidental a chegar aos locais das tragédias, a CCTV chinesa mantêm-se 24 horas de emissão sobre os acontecimentos e em Portugal as televisões discutem o comportamento do primeiro ministro numa viagem de avião ou quem vai ser o futuro presidente do PSD.

Absoluta hipocrisia da comunicação social portuguesa 30 anos depois do 25 de Abril; haja vergonha neste país.


(Ludgero Brioa)

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Hoje, quer a SIC quer a RTP1 abriram os seus telejornais da tarde com a Final da Taça enquanto que a TVI, pasme-se, abriu com as réplicas do sismo na China. Ao fim de 3 minutos a TVI continuava na China enquanto que a SIC estava em directo na sede da Federação a mostrar a entrada da Taça no carro duma empresa de segurança. Ora, para além da publicidade descarada, não há relevância jornalística no acto de pôr a Taça no banco do carro. Ao fim de 8 minutos, já a RTP e a TVI tinham
mostrado outras notícias como a ida do Primeiro-Ministro ao hospital (também discutível mas mais plausível), a SIC fazia uma reportagem sobre as roulotes de bifanas na final da Taça. Aos 14 minutos mostravam imagens de helicóptero do tal carro com a Taça a dirigir-se para o estádio. Em rodapé, havia uma mensagem a dizer Emissão Especial às 15h, era preferível dizer às 13h pois não há mais notícias. Entre
directos com adeptos, academia de alcohete, percurso da Taça, do almoço das velhas guardas na Mealhada conseguem dar não-notícias durante mais de 30 minutos até que começam as notícias com o aumento dos combustíveis. É verdade que é a SIC que faz a transmissão da Taça mas é incompreensível este Jornal da Tarde!

(Fausto Ferreira)

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É meia noite. A SIC-N tem no ar, há mais de duas horas e de forma ininterrupta, um programa sobre futebol. Bem sei que, sendo Domingo, o comentador Rui Santos tem o seu espaço habitual, das 23h00 às 24h00. Embora me pareça um absoluto exagero, esse espaço existe, ponto final. O que é absolutamente arrebatador – no pior sentido do termo – é que a SIC-N, que é, por definição, um dos (talvez mesmo “o”) canais de informação de âmbito nacional, orgulhando-se disso, crie e imponha aos seus telespectadores um verdadeiro tampão relativamente a todas as outras notícias que existem em Portugal e no mundo, que não são poucas, e cujo acesso é pura e simplesmente negado. A vitória do Sporting sobre o Porto na final da Taça não é, como é evidente, o que de mais importante se passa. Pelo menos, seguramente que não deve encher 4 horas de emissão, sem contar com as do jogo propriamente dito. Quem o diz é sportinguista, foi ao estádio e gosta de bola. Mas também considera o acesso à informação – já nem está em causa a sua selecção editorial – como um dos bens mais sensíveis numa democracia pluralista e informada.

(Rui Esperança)

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© José Pacheco Pereira
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