ABRUPTO

11.5.08


A FACE



Este é um artigo de propaganda eleitoral. Subjectivo e objectivo. Dirige-se ao PSD e a todos os portugueses, por via dos leitores do Público. É para 2008 e 2009. Não é nada de muito diferente do que se faz por todo o lado, mas sempre é menos disfarçado. Diz o que quer e ao que vem. E é um artigo de propaganda eleitoral, porque eu não sou indiferente ao resultado das eleições internas do PSD, nem das eleições nacionais de 2009. Não deveria surpreender ninguém, é o que é suposto fazer-se numa coluna de opinião, dar a minha opinião, para leitores adultos e vacinados. Se quiserem parar de ler, é agora boa altura.

Eu não faço parte da escola que acha que "analisar" e "escolher" são dois momentos diferentes, porque as minhas escolhas são racionais (não só mas também) e quando analiso não ponho entre parêntesis as razões. Se escolho por razões, como é que posso analisar sem ser por razões? O que é que me sobraria? Uma táctica? Uma gestão de silêncios e falas para alimentar uma carreira? Não, não é esse o meu caminho, nem tenho tempo, nem condição, nem interesse. Por isso, vou adiante com o conselho de velho Weber, o homem que me deu sempre os melhores conselhos em política. O primeiro é que a maioria das coisas que nós pretendemos tem o resultado contrário do desejado na acção. O ruído do mundo faz perder a intencionalidade da acção. O segundo conselho, o que vale para aqui, é que sempre se pensa, fala, escreve melhor quando existe empatia com o objecto sobre o qual falamos. Empatia, ou seja, gostamos ou não gostamos, não nos é indiferente. Se quiserem parar de ler, esta é a última oportunidade.

Na verdade, estava para escrever sobre outras coisas, mas esta semana houve a entrevista de Manuela Ferreira Leite a Judite de Sousa na RTP. A entrevista ainda me deixou com menos distância, porque distância é a melhor palavra que de imediato me suscita a entrevista. Tudo foi bizarro no tratamento televisivo da entrevista, de tal maneira que todos se aperceberam de que havia qualquer coisa pouco habitual. Vi as entrevistas de Rui Rio e de Santana Lopes, já vi muitas outras entrevistas de Judite de Sousa, mas não me lembro de nenhuma, nenhuma, que tivesse sido feita quase do princípio ao fim com um grande plano, um enorme plano do rosto de Manuela Ferreira Leite. Durante grande parte do tempo, o rosto nem cabia no ecrã, de tão próximo estava o olhar da câmara. Isto é objectivo; é só comparar as entrevistas.

Eu percebo muito bem a intenção do realizador. Não havia ruga, veia, movimento do olhar que não enchesse o ecrã, e o mais cruel dos planos escrutinava aquele rosto para lhe mostrar a fragilidade. É o mais violento dos olhares que a televisão é capaz, aquele que não permite que nada escape, que desapareça toda a reserva do corpo na sua parte mais exposta, a face. Aquele plano era todo um programa, tinha como objectivo mostrar uma mulher velha e cansada, com rugas, com o tempo na cara. Mostraria o mesmo em quase toda a gente, menos nos modelos de plástico que passam por homens e mulheres e que nasceram ontem com a pele limpa dos bebés. Mas não era toda a gente que estava ali, era Manuela Ferreira Leite. Aquele grande plano, excessivo e brutal, é todo um programa, insisto. Não há inocência.

Como sempre, há um Deus especial que protege os bons e faz a escrita do mundo pelas linhas tortas dos maus. E aquela face desprovida de qualquer defesa, exposta ao escrutínio quase incomodado dos espectadores, transmutou-se numa beleza muito especial, muito rara - a da verdade. É que debaixo daquela luz não há mentira que não se perceba, nem verdade que não se agigante. E aquela mulher com "passado", como se diz como se fosse um insulto; com "idade", como se diz como se fosse um anátema; que não "rejuvesnece", como todos nós em cada dia que passa, e em particular como os "jovens" com 40 anos, uma idade em que só se é "jovem" no Konsomol soviético; com uma vida vivida, um traço de tristeza, um sorriso vindo do milk of human kindness inesperado para a "dama de ferro" que lhe chamam, mostrava diante de nós o mais raro produto da política dos nossos dias - a verdade. Podemos não concordar com a sua "verdade", ter ideias diferentes sobre as soluções (em muita coisa eu tenho), ver o país de forma diferente, mas sobra imenso território comum e acima de tudo nesse território existe ar fresco, de pessoas que, quando falam das suas convicções e princípios, nós sabemos mesmo que são convicções e princípios, não é teatro. Não andam ali para enganar, nem para fazer espectáculo, nem para nos conceder uma falsa esperança. São confiáveis numa sociedade que está confusa. Quando se lamenta muito a crise dos valores na nossa sociedade, aquela mulher frágil como todos nós, a quem chamam "de ferro", faz a melhor das pedagogias - a do exemplo.

Está lá na face do grande plano. Pedem-lhe que diga se vai baixar os impostos e ela diz que não pode em 2008 antecipar qual vai ser a situação em 2009, por isso "se recusa" (uma palavra que ela diz bastantes vezes com alguma indignação) a prometer alguma coisa que não tem a certeza de poder fazer. Diz com clareza total que não tem qualquer problema em apoiar as medidas do Governo que entenda serem correctas e a favor do interesse nacional, mas que, com a autoridade que lhe dá esse apoio, criticará com dureza tudo aquilo que for mal feito. Dá um exemplo da sua perspectiva "humanista" face à visão "tecnocrática" de Sócrates com os certificados de aforro. "Nunca [lhe] passaria pela cabeça" mexer numa das formas de poupança daqueles que têm menos rendimentos, os que não sabem especular na bolsa, o povo mais miúdo que ela conhece, o povo do partido também. É de facto outra coisa, não é um exercício teórico, nem um título para os jornais pensado pelas agências, é ela mesmo, com as suas preocupações sociais que não são de encomenda.

Eu percebo que se apouque esta realidade, que se ache pouco falar de verdade, de seriedade, de credibilidade. Devem de facto abundar tanto, que só podemos lamentar o excesso. Quem a não tem despreza-a, quem não pode competir neste campeonato, para usar a linguagem futebolística de alguns, compete noutros. Têm "ideias", uma lista de vacuidades com que todos estamos de acordo e que não adiantam nem atrasam. Como o grau de crítica circulante nos media é escasso, basta este exercício para se parecer que se diz alguma coisa de novo. Épater le bourgeois é simplicíssimo.

Mas há pior, que é fazer uma lista de medidas governativas daquelas que eu posso sempre fazer numa noite, meio tiradas dos jornais, meio atiradas numa conversa de restaurante, e chamar-lhe um "programa de governo", um "projecto para o país". Pobre país com estes "projectos", sem "contabilista", que o deixariam, como algumas câmaras municipais, anos e anos paralisadas para pagar a festa, as piscinas, os centros de congressos. Dêem-me dinheiro sem "contabilidade" e até eu, um não-fazedor a não ser de livros, farei um bom par de piscinas e uma festinha da moda.

Por tudo isto, agradeço aqui ao realizador da entrevista da RTP que não sei quem é. Fez a melhor das propagandas, mais rara, a mais difícil de fazer, a que não se encomenda, a que não se coreografa, a que não se imita. Fez da fragilidade uma força imensa. Não sei se chega para ganhar eleições no PSD, estou até mais convicto que chega mais facilmente para ganhar eleições no país, tão grande está o divórcio entre o partido e o país, mas estou de bem com esta maneira de ser. É o que mais faz falta.

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© José Pacheco Pereira
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