ABRUPTO

6.4.08


REVISITAÇÕES AOS LOCAIS INFECTOS



Escrever sobre Maio 68 e começar por Sarkozy não é muito auspicioso. O homem, na campanha, num comício em Bercy em Abril de 2007, gritou "que era necessário liquidar a herança de Maio de 1968". Um ano depois, o mesmo Sarkozy casou com uma senhora que foi modelo, que no exercício da sua carreira apareceu várias vezes em trajes menores e mesmo sem trajes nenhuns e que, sem Maio de 1968, muito dificilmente poderia ser primeira-dama de França, nem a ninguém passaria pela cabeça que fosse, a começar pelo putativo esposo. Na tradição de Mitterrand e Chirac seria quando muito uma espécie de "segredo de Estado" permitido e consentido por velhas regras machistas e pela douce France, num universo paralelo ou em Tóquio, mas não no Eliseu. Goste-se ou não - e eu não gosto da exposição excessiva da privacidade, mas gosto que Sarkozy possa escolher ter a vida que quiser -, os costumes mudaram. As sociedades têm face à vida pessoal uma atitude mais laica e menos normativa, a hipocrisia continuou mas desabitou alguns lugares e isso é do "espírito do tempo". O problema de Maio 68 é que o mês "a liquidar" está bem dentro da cabeça dele e ele não sabe, ou faz que não sabe.

Escrever sobre Maio de 1968 começando pela vida que Sarkozy expõe como vida privada ainda é menos auspicioso. Na verdade, não foi só Maio de 1968, que é uma abstracção construída também pela ficção, que fez a vida privada de Sarkozy poder ser exibida sem um grande escândalo nacional que o incapacitasse de continuar Presidente, mas foi o que fez o Maio de 1968 que também a fez.

A matéria desse annus mirabilis ou horribilis, conforme a versão, veio de trás e continuou para a frente. A data é simbólica porque muito visível, mas o verdadeiro "culpado" são os anos 60. É a década que fez mudar muita coisa, em múltiplos sentidos. À luz da década, vista globalmente, de São Francisco a Praga, o Maio francês não é sequer o mais significativo. Maio de 1968 beneficiou do último suspiro de influência francesa nas modas intelectuais, mas já estava no limite dessa influência. Sartre está no fim, Althusser e Lacan tinham uma influência equívoca como a do estruturalismo, Foucault, Debord, Deleuze sobreviveram pela influência numa parte dos campus universitários americanos mais à esquerda, mas a coisa estava a acabar.

Mesmo a parte propriamente estudantil e política, as revoltas nas ruas do Quartier Latin, as barricadas, a ocupação da Sorbonne, representavam uma mistura de movimentos e grupos ultrapolitizados como nunca as "massas" o são, anarquistas, maoístas e trotsquistas, cuja relação com os operários grevistas, controlados pelo PCF, era equívoca, para não dizer de oposição frontal, quase tanta oposição como a que tinham com De Gaulle. Os operários queriam mais sous, os estudantes repetir a Comuna de Paris.

Talvez por isso, passada uma dúzia de anos, passada a tentação terrorista que é a que vem sempre com o refluxo, todas aquelas pessoas entraram no mainstream de tudo, da política, da universidade, da comunicação social, da vida. Só que o mainstream, o rio principal, já não era o mesmo, e eles já não sabiam viver da mesma maneira que os seus pais e que os seus filhos. Gostavam de dinheiro e estatuto, mas não sabiam tão bem como os seus pais e principalmente como os seus filhos ganhá-lo. Gostavam de poder e de influência, mas coexistiam bem com um mundo mais conflitual e menos respeitador, até porque "não confiavam em ninguém com mais de 30 anos" e agora tinham-nos. Eram mais democratas que os seus pais e tinham causas, mesmo que às vezes essa democracia fosse laxista e condescendente e as causas confusas, mas deram o corpo ao manifesto por causas que as gerações anteriores dominadas pelas ideologias de ferro ignoravam e atacavam, como, por exemplo, o apoio aos dissidentes soviéticos.

Mais importante do que o destino dos estudantes e intelectuais franceses, que são a face do Maio de 1968, são, nos anos 60, as mudanças de influência que se passam na cultura de massas, nos consumos culturais de massas. Já havia precedentes, alguns dos quais absorvidos mesmo no padrão intelectual francês, como o cinema, a banda desenhada e os romances policiais, que já eram em 1968 objectos de culto "americanos", lidos pelos Cahiers du Cinema ou pela miríade de revistas como a Tel Quel. Mas eram, nesses anos, entendidos como icónicos, colocados no mesmo plano dos novos ícones emergentes, o col Mao e o "Yukong que movia montanhas" e vinha nas Citações de Mao Zedong, então Mao Tsetung.

Os franceses foram os últimos a perceber que o Maio dos outros era mais poderoso que o seu. Subterraneamente, o francês estava a declinar como língua franca de tudo, mesmo da revolução. O grafismo vinha de Londres e de Haigh Ashbury, a música de Londres e de Woodstock, a moda de Londres e de São Francisco, os Beatles varriam o mundo e escreviam uma canção chamada Lucy in the Sky with Diamonds:
Imagina-te num barco num rio
Com arvores de tangerina e um céu feito de marmelada

Alguém te chama e tu respondes muito devagar

A rapariga com olhos de caleidoscópio.
Quando as ruas de Paris ardiam, esta canção tinha um ano. A maioria dos estudantes franceses não a entenderiam, não perceberiam por que razão "tu respondes muito devagar" e o céu era "feito de marmelada" e a rapariga tinha "olhos de caleidoscópio", mas, nas ruas de São Francisco, isto tinha um nome: LSD. Outro mundo, outras influências, um retorno para dentro, com todas as ambiguidades, mas que mostrava uma pulsão individualista e hedonista que as drogas revelavam mais eficazmente do que as causas políticas da Gauche Proletarienne. Para nosso bem ou mal, foi assim.

É nessa cultura de massas que percebemos o que mudou nos anos 60, mais no que nos intelectuais e nos estudantes de Maio de 1968, embora o seu ras-le-bol fosse feito da mesma matéria. A cultura dos anos 60 só era maoísta, francesa, intelectual e politizada na parte mais superficial do folclore político, porque por baixo, onde as coisas mudavam, era proletária e anti-intelectual (em Inglaterra), libertária na geração do baby boom americano, nos filhos de Archie Bunker, ou dos GI da II Guerra, que chegavam à universidade e ao flower power e, pela primeira vez, tinham dinheiro para moldar o consumo, todos os consumos, os materiais, como os seus pais, com as little boxes dos subúrbios, mas também os "espirituais" como só eles puderam fazer, discos, livros, revistas, espectáculos, shows televisivos, cinema, objectos e, mais tarde computadores, iPod, telemóveis. Eles fizeram a transição dos electrodomésticos para os gadgets, abriram caminho ao mundo da Internet e das novas tecnologias. Melhor, abriram caminho para o que nós pensamos ser o "poder" das novas tecnologias e para o seu uso.

Essa cultura era individualista num modo novo, hedonista num modo novo, "material" num modo novo, "espiritual" num modo novo, liberal e libertária num modo novo e que se incorporou no modo de vida das pessoas. Tinha uma enorme força: era feita para a felicidade terrestre e não para a celeste e os tempos estavam maduros para a receber. Por isso, as pessoas querem lá saber do Sarkozy mais a sua dama; quando muito é uma questão de gosto e nós somos mais condescendentes com as escolhas dos outros, porque prezamos a liberdade das nossas.

Eu não estou a dizer se Maio de 1968 foi mau e é para "liquidar", como quer Sarkozy, ou se foi bom como a nostalgia dos velhos combatentes soixante-huitards idealiza. O que digo é que o que foi é o que é. E o que é tem muita força por o ser e muita fraqueza porque está a deixar de ser. A grande fragilidade do mundo feito pelos anos 60 é que só sobrevive numa relativa prosperidade, precisa de riqueza, bem-estar material e segurança, para poder continuar a ser individualista, hedonista e idealista.

As fracturas no edifício dos anos 60 não vêm do retorno do conservadorismo europeu ou americano, mas da crise económica gerada pela dificuldade do mundo ocidental, onde os valores do Maio de 1968 "valem", em competir com a globalização, vem da dificuldade em manter uma abertura optimista às causas, num mundo em que há a Al-Qaeda, o 11 de Setembro, e o apocalipse está na esquina da rua, e em que um certo reforço identitário e cultural é a única defesa. Num mundo menos tolerante, e mais pobre, o adquirido do Maio de 1968 não sobrevive, nem em Paris, nem em Londres, nem em Nova Iorque. É isso.

(Versão do Público, 5 de Abril de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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