ABRUPTO

13.4.08


O TELEMÓVEL



Um telemóvel esteve no centro do momento público mais dramático da educação portuguesa nos últimos tempos. Uma semana antes do telemóvel, foi uma manifestação de professores. Uma semana depois da manifestação, uma senhora magra e baixa de gabardina branca, pequena e frágil, a lutar contra uma adolescente gigante, feita de cereais matinais e vestida de escuro. Na mão das duas, agarrado pelas duas, está um objecto que não existia há dez anos, um telemóvel pequeno que cabe num bolso dumas calças de ganga. No episódio a que me refiro, e que passou na televisão centenas e centenas de vezes, não há um, mas dois telemóveis, um que está no centro da luta, outro que filma. À volta do telemóvel que filma está uma turma do ensino secundário, está uma escola da cidade do Porto, está Portugal, está a Europa, está o mundo inteiro. Está o YouTube.

O pequeno objecto é o mais ubíquo de todos os objectos que existem hoje em Portugal, mais visível do que outro objecto tão omnipresente como o telemóvel e tão subversivo socialmente como o telemóvel: o relógio de pulso. Telemóvel e relógio são instrumentos de poderosas transformações sociais que eles revelam tanto como potenciam. Não são eles por si só que produzem essas transformações, porque nenhuma tecnologia por muito nova e revolucionária exerce efeitos sociais sem a "sociedade" estar preparada para a usar, sem que corresponda ao tempo e ao modo, à forma, às correntes de mudança da sociedade que já estão em curso e "descobrem" o objecto acelerando o seu curso com ele.



É o caso do relógio que saiu do laboratório das excentricidades, um pouco como precursor de um Meccano ou um Lego moderno, ou de um jogo de habilidade mecânica, ou de um objecto de luxo tão curioso como inútil, para se transformar numa necessidade tão vital que biliões de homens o trazem no pulso. Se exceptuarmos o uso dos relógios nos navios para calcular a longitude, os relógios não serviam para nada quando a esmagadora maioria das pessoas trabalhava de sol a sol, ou ao ciclo das estações, e estas dependiam de um calendário que estava escrito nos astros. Calendários eram precisos, relógios não eram precisos, até ao momento em que a Revolução Industrial apareceu e mudou quase tudo por onde passou. Milhões de pessoas vieram dos campos para as cidades, para as fábricas e para as minas, e precisavam de horas. O relógio subiu primeiro para as torres ou para o centro da fachada neoclássica das fábricas e lá continuou, passando depois para dentro, e depois para o bolso dos ricos e por fim para o pulso de todos. Hoje o relógio ordena o nosso tempo com um rigor muito para além do biológico e manda no nosso corpo, como nenhum objecto do passado. É tão presente que parece invisível, nem damos por ela que está lá, é parte do nosso corpo, mais do que objecto estranho. Um figurante do Ben Hur esqueceu-se dele, e nos filmes há quem vá para a cama sem ser para dormir, só vestido no pulso.



O telemóvel é o objecto que mais mudou os nossos hábitos sociais desde que existe. Não é o computador, nem a Internet, nem o cabo, é o telemóvel. E continua a mudar sem darmos muito por isso, porque a mudança se faz de forma desigual, quer no que muda, quer em quem muda. Dito de outra maneira, muda certas coisas nos jovens e muda outras nos adultos e os seus efeitos estão longe de ter terminado ou sequer de se saber até que ponto de transformação vão. Uma coisa é certa, o telemóvel, ou seja um instrumento de contacto instantâneo e portátil entre mim e todos e todos e mim, que usa predominantemente a voz e, daqui a poucos anos, usará a voz e a imagem, emigrará para ainda mais perto de mim, para a minha roupa, para os meus ouvidos, como já emigrou para as paredes do meu carro. O que ele transporta não é uma ficção, não é um avatar ou um nick mais ou menos anónimo, não é a minha prefiguração virtual como no Second Life ou nas caixas de comentários ou nos blogues anónimos, é a minha voz, a minha imagem, ou seja, eu. Não seria tão poderoso se fosse um instrumento do meu teatro virtual. Bem pelo contrário, é uma encarnação da minha persona, é o meu lugar na sociabilidade dos outros.



Por isso, luta-se por um telemóvel, porque num telemóvel de um adolescente está muito do seu mundo: telefones dos amigos, telefone dos namorados, passwords, fotografias, mensagens, vídeos, o equivalente a um diário pessoal, em muitos casos mais íntimo que um diário à antiga, com a sua chavinha de brincar que dava a ilusão de que ninguém o lia. À medida que se caminha pela idade acima o conteúdo do telemóvel muda, mas continua pessoal e intransmissível, com os SMS comprometedores que arruínam muitos casamentos, até se tornar quase um telefone de emergência que os filhos dão aos pais com os números deles já gravados e os das emergências: "é só carregar aqui e eu atendo, se houver qualquer problema, assim não se sente sozinho." Sente.

Mas as mudanças não se ficam por aqui. Já escrevi sobre algumas, como a presentificação obrigatória, a obrigação socialmente exigida de se estar sempre presente, porque o corpo e o telemóvel vão juntos. Deixou de se poder estar longe de um telefone, já para não dizer que se deixou de poder não ter telemóvel. A recusa de dar um número de telemóvel é tida como uma má educação ou uma insensata e insociável vontade de não estar disponível. Com o telemóvel está-se sempre disponível, ficam sempre os recados, queira-se ou não recebê-los, e o novo código do telemóvel exige que haja sempre resposta. Por que razão tenho eu que receber recados que não solicitei, e dar respostas que posso não ter tempo ou disponibilidade ou vontade para dar? Não posso, porque a máquina não aceita um não por resposta, ela vive do tráfego, e deseja mais tráfego. Por isso oferece-me voice-mail, e-mail no telemóvel, mensagens, sem eu o pedir.

Nos mais jovens o telemóvel é apenas mais um instrumento para a completa insensibilidade à perda de privacidade e intimidade. Crescendo num mundo que não preza e não educa para esses valores, um mundo que incentiva a exposição pública, o telemóvel fornece um meio de registo, incorporando a máquina fotográfica e o vídeo, no qual qualquer fronteira entre o que é público e privado se esbate. Qualquer um é um paparazzi de si próprio e dos outros e o rapaz que filmou o vídeo em glória do 9.º C da escola Carolina Michaëlis estava a pensar nessa dimensão lúdica e social do YouTube onde a vã glória de maltratar uma professora ou de uma fight na turma iriam dar fama na rede de chats e no Hi5 onde milhares de raparigas, adolescentes ou já nem tanto, se mostram em poses provocadoras, já para não falar no resto. Não sei se quando crescerem se vão arrepender, mas então já será tarde, porque uma vez na rede sempre na rede.

Por último há o controlo, o magnífico instrumento de controlo que é o telemóvel, pessoa a pessoa, numa rede que prende os indivíduos numa impossível fuga àquilo que é o objecto sempre presente, sempre ligado (os telemóveis desligados são de desconfiar), no qual a primeira pergunta é sempre "onde tu estás?", uma pergunta sem sentido no telefone fixo, esse anacronismo. Adolescentes jovens ou tardios, casais, maridos, mulheres, amantes, namorados, patrões e empregados, jogam todos os dias esse jogo do controlo muito mais importante do que a necessidade de falar ao telemóvel. Na verdade a esmagadora maioria das chamadas de telemóvel não tem qualquer objecto ou necessidade de ser feita, ninguém as faria num mundo de telefones fixos, que não seja pelo controlo, pela presentificação do indivíduo no seu jogo de inseguranças, solidões, afectos, e medos, através da caixa electrónica que se segura numa mão.

Não é a necessidade que justifica a presença quase universal dos telemóveis desde as crianças de seis anos até aos velhos, os milhões de chamadas a qualquer hora do dia, em qualquer sítio, da missa à sala de aulas, do carro à cama, é o complexo jogo de interacções sociais que ele permite, sem as quais já não sabemos viver. Viver num mundo muito diferente e cada vez mais diferente.

(No Público, 12 de Abril de 2008)

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No seu texto «O telemóvel» refere-se ao relógio como uma «necessidade tão vital que biliões de homens o trazem no pulso». Será um tanto difícil, pois só há cerca de seis mil e seiscentos milhões de seres humanos. Está aqui a cometer o erro clássico de traduzir o termo inglês «billion» por «bilião», o que não está correcto; «billion» significa «mil milhões». Recomendo a leitura do texto «Em torno do bilião» que está no nº 18 de «A folha - Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias».

(José Carlos Santos)
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Não subscrevo a observação do leitor José Carlos Santos. Não me parece que se trate de um erro clássico de tradução do termo billion.

Por um lado, sem ter qualquer procuração de JPP, o contexto em que é produzida a expressão “biliões de homens o trazem no pulso” não tem pretensões de rigor científico que justifique o preciosismo de saber se bilião quer dizer milhar de milhões (um 1 seguido de nove zeros, de acordo com a norma americana) ou milhão de milhões (um 1 seguido de doze zeros, de acordo com a norma europeia).

Por outro lado, não é ilegítimo que um europeu recorra à norma americana se o contexto não deixar dúvidas. É o caso. Uma vez que o número de seres humanos que existem sobre o planeta é de cerca de 6 000 000 000 (um 6 seguido de nove zeros, não chegando portanto aos doze zeros), se disser 6 biliões sei que, neste contexto, bilião não pode estar de acordo com a norma europeia mas sim com a norma americana.

(Jorge Oliveira)

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Quanto às opiniões do seu leitor Jorge Oliveira, quero começar por observar que, ao contrário do que ele parece julgar, não existe uma «norma europeia» e uma «norma americana». O que existe é a «escala longa», que é usada na maioria dos países da União Europeia (entre as excepções contam-se o Reino Unido e a Grécia) e a «escala curta», que é usada nos países de língua inglesa e no Brasil (o resto da América Latina usa a «escala longa»).

Não ponho em causa que, neste caso, seja fácil de ver o que significa «biliões» quando se fala de «biliões de homens». Mas em muitos casos não é. É o caso, por exemplo, se estivermos a falar da dívida externa de um país. Além disso, se eu escrever que «dvemos corrijir erros cem ezitar» é claro para qualquer leitor que isto significa que «devemos corrigir erros sem hesitar»... mas perturba um tanto a leitura, não é verdade?

O hábito de não ligar a estes «preciosismos» pode ter consequências funestas. Foi o caso, há uns 20 ou 30 anos, de um casal francês que teve de pagar ao seu jardineiro 7500 francos. Só que, como estavam habituados a pensar em termos de «francos antigos» (o franco francês passou a valer em 1958 um centésimo do que valia antes) pagaram-lhe 750000 francos. Quando tentaram reaver o dinheiro, o jardineiro argumento perante o juiz que já não o tinha, pois gastara a maior parte em casinos. O juiz não o condenou.

(José Carlos Santos)

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Eu não queria entrar em polémica com o leitor José Carlos Santos, mas a verdade é que voltamos ao campo do preciosismo. Eu não "julgo" que exista uma norma europeia e uma norma americana. Para todos os efeitos, existem. Embora nenhuma delas esteja cunhada, no cabeçalho, com a designação de origem, e não sejam exclusivas dos EUA e da Europa, é assim que são conhecidas e referidas em toda a parte. Escala curta e escala longa não são mais do que os sistemas de nomenclatura de números grandes adoptados em cada um dos casos.

A norma "americana" recorre à escala curta. É muito mais simples e facilita o acompanhamento mental da escrita dos números grandes. Logo que se entra nos milhares de milhões, os americanos, melhor dizendo, a generalidade dos países de língua inglesa e alguns outros, incluindo o Brasil, empregam o bilião. O Reino Unido recorria à norma "europeia", mas em 1974 adoptou a americana.

Em lugar de gastarmos tinta a escrever, por exemplo, que o PIB português é de 150 mil milhões de Euros (e a ajustar o nosso pensamento à bateria de algarismos que isso comporta) seria bem mais fácil escrever 150 biliões de Euros. Diz-nos de imediato que já estamos na "casa" seguinte à dos milhões. E se passarmos a casa dos biliões entramos na dos triliões, etc. É mais intuitivo.

(Jorge Oliveira)

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No seguimento da interessante troca de ideias acerca das formas de referir os 'números grandes' (nomeadamente os 'biliões'), não queria deixar de referir o uso indistinto da 'vírgula' e do 'ponto' quando estão em causa números decimais - pois, como se sabe, é a primeira que se deve usar em Portugal.
Por sinal, a situação mais bizarra dá-se quando, da boca de uma mesma pessoa (e até numa mesma frase!), se ouvem coisas como «As acções X subiram 'um-vírgula-quatro por cento', enquanto as Y desceram 'dois-ponto-três'».

(C. Medina Ribeiro)

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