ABRUPTO

9.3.08


O REGRESSO DA RUA


Há um ano, se alguém dissesse que a "rua" iria ser importante na política portuguesa, seria ridicularizado. Ou era comunista ou era um antiquado nostálgico do PREC ou, ainda pior, do Maio de 1968. Estava na moda a mania um pouco yuppie e reaccionária de pensar que isso das manifestações não interessava para nada, eram coisas de sindicatos e do PCP, que eram inócuas e que nenhum "decisor" sério, dos que enxameiam as páginas dos jornais de economia, as tinha em conta para alguma coisa. Deixá-los lá estar no seu nicho de arcaísmo, que é nos gabinetes que as coisas se resolvem.

Tudo isto é um pouco irónico porque hoje o país está suspenso de uma manifestação em que toda a gente está na rua, do PS de Alegre ao PSD. Até a parte PP do CDS-PP está na rua, a que mais nefelibata é sobre as manifestações, essas "coisas de comunistas", e vai lá sob a forma de uma minúscula associação de professores ligada ao partido. Para colocar a cereja no cima do bolo da "rua", até o Governo está a preparar uma contramanifestação daqui a uma semana, tentando arranjar uma sala suficientemente pequena para ter uma enchente e tecto e paredes grossas para não se ouvirem os assobios.

Se se estivesse atento aos sinais, percebia-se que a "rua" estava a encher-se de forma anormal, consistente, muito para além da força do PCP e da CGTP, há muito tempo. Ao mesmo tempo, também a força da central sindical pró-comunista e do último partido comunista a sério da Europa Ocidental estavam a aumentar porque não há uma coisa sem a outra. Era pelo menos óbvio que existia mobilização e essa mobilização estava a trazer para a "rua" primeiro gente da área que se tinha desmobilizado já há bastante tempo e, depois, gente nova, não em idade, mas na ida a manifestações.

Sempre maltratados pela comunicação social, que acha muito mais graça aos efeitos pirotécnicos do BE, sindicatos, grevistas e PCP continuavam a funcionar mais como um pólo de mobilização do que de atracção, mas, mesmo assim, com resultados num país que tem o "retrato social" de Portugal. Desde a táctica de desgaste de Sócrates, que ia dos assobios de meia dúzia de activistas à entrada deste para as suas sessões de propaganda e casting, estragando-lhe os cenários e o marketing, até à sucessão de greves para culminar em greves gerais, estava em curso um treino do clima de agitação. Com o agravar da crise social, com muita gente a empobrecer, a começar pela classe média, com conflitos corporativos suscitados pela linguagem das reformas apresentadas a cada grupo profissional como sendo "contra os privilégios injustos" do grupo profissional do lado, reformas com mérito feitas muitas vezes de forma incompetente e atabalhoada, com casos de abuso do poder, como o da DREN, com um ambiente de precariedade na função pública, as pessoas começaram a perder o medo, ou a ultrapassá-lo, e a perguntar a si próprias: "Por que razão é que não vou à manifestação, por que razão não faço greve, tão atingida, humilhada, desesperada que estou?" E faz greve e vai à manifestação.

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Analisemos três momentos deste crescendo. Primeiro, a CGTP fez uma manifestação com cerca de 100.000 pessoas e continuou a indiferença. No tratamento noticioso valeu menos do que um anúncio da máquina de propaganda de Sócrates, menos do que um incidente parlamentar ou um caso de doença rara com que se metem as lágrimas nos telejornais. Nos blogues era o mesmo ambiente em pior, porque os blogues estão cheios de gente cuja classe social se acha acima destas coisas e conhecem pouco mais do que o Portugal das livrarias e das páginas de opinião. Mas as pessoas estavam lá, na "rua", elas pelo menos sabiam que eram muitas.

Segundo, atrás do núcleo duro do PCP e da CGTP, começaram a aparecer outras forças políticas, regionais e locais, a minar o PS por dentro, como aconteceu na contestação à política de saúde do Governo. As manifestações já tinham à sua frente autarcas do PSD e do PS e, facto decisivo, obtiveram uma enorme vitória: derrubaram na rua o ministro da Saúde. A contestação na educação não teria sido o que foi e é sem as pessoas terem a consciência intuitiva que podem de facto empurrar o primeiro-ministro para derrubar a ministra ou obrigá-la a ceder. Será difícil, mais pela ministra do que por Sócrates, mas este já mostrou que pode ser empurrado para um canto e no canto pede tréguas.

Terceiro, há a manifestação do PCP, também maltratada pela comunicação social, a primeira que o partido faz em seu próprio nome, debaixo das bandeiras vermelhas da foice e do martelo, com os manifestantes a mostrarem o cartão do partido em frente das janelas do Tribunal Constitucional. Foi como se fazia antigamente, antes da batalha, quando o comandante concentra as tropas de mais confiança, a elite, as falanges mais treinadas, a cavalaria pesada, queimados pelo sol de mil refregas, retirando-as ordenadamente do conjunto das tropas coligadas e juntando-as ao seu lado, para lhes falar ao espírito de corpo, gritarem uns gritos de guerra próprios e depois voltarem às fileiras comuns.

Era uma manifestação puramente política, algo que nenhum partido em Portugal seria capaz de fazer, com cinquenta mil pessoas a marcharem pelo PCP e pelo comunismo, uma coisa tão rara nos dias de hoje em todo o mundo que deveria suscitar toda a atenção e todas as análises, mas passou quase despercebida. Este facto não encaixa no quadro mental e comunicacional dominante dos dias de hoje, por isso é como se não existisse. E, no entanto, sem o ver, também não se vê o Portugal realmente existente e não aquele que nós pensamos em abstracto para o século XXI.

Para finalizar, o PS e o Governo resolveram mostrar quão grande era a contestação na "rua" mostrando quão pequena é a sua capacidade de mobilização: anunciaram uma contramanifestação pequenina, que todos os dias muda de sítio para encolher as paredes e parecer que é grande na televisão. Era para ser numa praça do Porto, é certo que uma praça muito pequena e bem fechada de limites, para passar depois para uma sala do tamanho de menos de metade da praça. Eu a pensar que um partido que está à frente nas sondagens e cujo primeiro-ministro ganha com facilidade o confronto eleitoral com a oposição não teria dificuldade em encher a Avenida dos Aliados de gente desde a câmara à Estação de S. Bento. Pelos vistos, teme não o conseguir e a sua fraqueza já concedeu a vitória aos adversários.

Seja como for, também o PS está na "rua", verdade seja dita que dos dois lados. O PS governamental vai para a rua, embora mais fraco do que o PS que vai estar na manifestação dos professores, ou que esteve nas manifestações contra Correia de Campos. Ora isto muda o caso de figura e representa a vitória da "rua" um ano depois do seu vilipêndio. Não é que o PS não tenha todo o direito de lá estar, mas é o facto, esse sim preocupante, de todos sentirem necessidade de lá estar. Isso é que parece o PREC, medidas as distâncias.

Estando Governo e oposição na "rua", frente a frente, estamos numa situação em que se vai para a "rua" por falência (ou inexistência) de mecanismos institucionais que impliquem mediações no processo político. Falência do Parlamento, em primeiro lugar, dos partidos, em particular do PSD, na oposição, e do PS como apoiante do Governo, falência de muitos instrumentos de mediação. Por isso é que, estando toda a gente na "rua", nem sempre se sabe como de lá sair.
Sobre o "sair da rua" veja-se a nota Zénite e Nadir.
(No Público de 8 de Março de 2008)

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© José Pacheco Pereira
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