ABRUPTO

16.3.08


LECTOR INTENDE: LAETABERIS



Fica já aqui a tradução porque ninguém é obrigado a saber latim e pode parecer pedante manter o segredo do título até ao fim: "Leitor, presta atenção, vais ter prazer". Prazer, gosto, deleite, talvez felicidade, com o que vais ler. Não neste artigo, mas nestes livros. A frase foi escrita no século II por Apuleio logo no início da sua história de uma "metamorfose" muito particular, O Burro de Ouro. O livro existia na minha biblioteca familiar, numa tradução ou do final do século XVIII ou do início do século XIX, e eu li-o porque a minha referência de então, um enorme Larousse universal em dezassete volumes em letra microscópica, que era tão pesado que vinha com uma estante especial, dizia que tinha partes impróprias, o que era um excelente convite à leitura adolescente. Só que a tradução estava censurada, como muitas, como As Mil e Uma Noites, como o Dafnis e Cloé, e por isso fiquei com a história do burro lascivo na memória e passei adiante. Até hoje, quando encontrei O Burro de Ouro de novo, na tradução de Delfim Leão na Cotovia, certamente livre da censura dos tempos passados.

Este surto de traduções de clássicos que marca os nossos dias devia ser notícia de primeira página, mas nem eu, "director por um dia", o fiz, verdade seja porque não me lembrei. Mas devia haver títulos como: "Depois de meio milénio, existe em português uma tradução integral do Orlando Furioso". Porque é esse o tema a que invoco o prazer do leitor: livros, grandes livros, traduzidos. Porque, no meio deste tumulto continuado que é a vida pública portuguesa, estampido mais que som, zanga mais que fúria, meia dúzia de portugueses tem estado em gabinetes de universidades ou em bibliotecas, mas mais provavelmente em casa, de dia e de noite, com mais ou menos tempo, com mais ou menos sossego, a traduzir livros, grandes livros, grandes livros esquecidos, grandes livros que só outra meia dúzia de pessoas lê, mas são os que nos fizeram como nós somos. É da natureza destas coisas que o seu trabalho passe muito despercebido, pouco remunerado, pouco reconhecido e longe de todas as ribaltas. Não tenho dúvidas da surpresa que terão eles próprios ao ler este artigo.

Não se trata necessariamente de trabalhos eruditos, de edições críticas, embora também as haja, de textos fixados com cuidadosa comparação de versões, de multidões de notas esclarecendo cada anacronismo ou perplexidade. Também é erudição, porque isto não se pode fazer sem o conhecimento profundo de uma língua, muitas vezes pouco comum, numa forma arcaica, mas não só. É também recriação literária com o sentido de colocar em português a impossível distância de outra língua com idêntico "fogo". Noutros casos, é trabalho científico de grande rigor quando se trata de obras de natureza não literária, como as da Filosofia.

Os últimos anos têm vindo a conhecer um recrudescimento da tradução de grandes obras clássicas, muitas das quais nunca tinham sido integralmente ou em parte traduzidas em português a partir da língua original. Homero, Ovídio, Petrónio, Apuleio, entre os mais clássicos, e depois Milton, Shakespeare, Rilke, Brecht, etc. Traduzir os clássicos é uma atitude clássica e pode ser, insisto, pode ser que tal se deva a procurar um refúgio do pathos dos nossos dias, com demasiada luz, muita cor, muito movimento, que seja essa procura do silêncio com as vozes antigas que torna alguns portugueses de hoje em émulos dos nossos árcades que também se interessaram pela tradução. Apenas para citar obras recentes ou obras em curso, tivemos nos últimos tempos o Paraíso Perdido, de Milton, O Burro de Ouro, de Apuleio, as Metamorfoses, de Ovídio, o Satiricon, de Petrónio, o Cyrano de Bergerac, de Rostand, mais Rilke que já conhece mais do que uma geração de traduções, Aristóteles, Nietzsche, Kant e Husserl, isto para falar só de textos árduos de traduzir e sendo injusto com outras traduções que sei que existem, mas que não li ou folheei. Estas, vi-as, li-as ou consultei-as e sei como é difícil. No caso do Cyrano, recordo o Vasco Graça Moura e como uma só frase, uma só palavra, transporta dificuldade numa tradução, como lhe aconteceu na Tirade du Nez, que seria sempre o espelho da qualidade da sua tradução de Rostand e teria que suportar a representação, o tour de force do actor, em português.

O meu pretexto próximo, o meu título de primeira página, tem a ver com a tradução portuguesa do livro de Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, feita por Margarida Periquito para a Editora Cavalo de Ferro. O livro padece de alguns males: não ter nem a capa dura, nem a encadernação, nem a dimensão, nem a qualidade do papel, que as gravuras de Gustave Doré e o texto de Ariosto exigiriam. Como livro, entidade física, não é brilhante, com as gravuras e o texto encavalitando-se num papel amarelado suficientemente transparente para se ver o verso. Mas, como edição, mesmo com o apoio dos italianos, é uma edição corajosa, como têm sido as de algumas editoras portuguesas que têm apostado em traduções, como a Cotovia.

Eu não tenho competência técnica para julgar da qualidade da tradução, em particular, da fidelidade do verso, da prosódia, mais disso do que das palavras entre o italiano e o português. Mas como leitor só tenho contentamento, tenho nas minhas mãos um livro mítico, que só conhecia de referência ou de fragmento, um livro que posso agora confrontar em português, "navegar" ao sabor da página mesmo que não o leia de fio a pavio, nem isso me diminui o prazer de encontrar as suas histórias e personagens, o seu "espírito" poético, o tempo estranho da mitologia daqueles momentos fundadores daquilo que nós somos, europeus vindos da reconquista, europeus.

Ainda há 130 anos, o livro era suficientemente popular para justificar o trabalho de Doré, que, já no fim da vida, fez as gravuras que dão forma às "imagens" do livro. E que gravuras! Mas a beleza soturna e romântica dos bosques encantados, a quadriga alada que caminha para a Lua, as cenas de batalha já não suscitam quase nenhuma memória e as poucas referências que ainda sobrevivem destas histórias estão a perder-se muito rapidamente. Para a curta memória dos dias de hoje, podemos reconhecer o "mundo" de uns poemas do Romanceiro, com "mouros" e donzelas, as histórias de cavalaria que vêm no Quixote, alguns nomes de personagens de ópera, uma memória vaga de histórias "medievais" de Herculano, mesmo O Senhor dos Anéis, num contínuo de referências já muito longínquas, insisto, mais ao mundo do Orlando Furioso do que ao livro. E, no entanto, nós vivemos num país da "reconquista", com castelos mouros, mouras encantadas e façanhudas memórias como as que Eça usou, de forma ao mesmo tempo irónica e séria, para fazer a história dentro da história do Tructesindo, para nos contar a nós, Portugal. Tructesindo, um nome bárbaro que se irmana bem com a mescla de personagens do Orlando Furioso, com nomes como Rodomonte, Medoro, Astolfo, Bradamante, Rinaldo, Agramante, Angelica, uma mistura de nomes germânicos, latinos, gregos, árabes, muitas vezes transliterados pelo "inimigo", que moldava o nome bárbaro à sua oralidade e à sua grafia, ou seja, os nomes, e as histórias que transportam, que vem da génese do fundo da Europa. Orlando é o Roland da Chanson de Roland, aqui louco pelo amor, "furioso".
Este é o "programa" do livro na parte do "furioso":

Dirò d'Orlando in un medesmo tratto
cosa non detta in prosa mai, né in rima:
che per amor venne in furore e matto,
d'uom che sì saggio era stimato prima;
se da colei che tal quasi m'ha fatto,
che 'l poco ingegno ad or ad or mi lima,
me ne sarà però tanto concesso,
che mi basti a finir quanto ho promesso.
Jorge Luís Borges gostava muito particularmente deste Orlando Furioso, um dos clássicos que nos faltavam em português. Borges era dado a leituras peculiares. Mas o que ele gostava tinha sempre mais modernidade do que nós pensamos, porque ele dizia, e bem, que "a erudição era uma forma moderna do fantástico". Borges, leitor de Ariosto, é uma boa recomendação para nós, leitores de Borges. E se a podemos seguir, devemos isso a pessoas como Margarida Periquito, que passou um ano, debaixo da candeia, para ficarmos com o mundo clássico, a trabalhar para nós num livro que "ama". Amores destes também são, como o de Orlando, "furiosos".
EL LIBRO DE LOS SERES IMAGINARIOS: EL HIPOGRIFO

Para significar imposibilidad o incongruencia, Virgilio habló de encastar caballos con grifos. Cuatro siglos después, Servio el comentador afirmó que los grifos son animales que de medio cuerpo arriba son águilas, y de medio abajo, leones. Para dar mayor fuerza al texto, agregó que aborrecen a los caballos... Con el tiempo, la locución "Jungentur jam grypes equis" (cruzar grifos con caballos) llegó a ser proverbial; a principios del siglo XVI, Ludovico Ariosto la recordó e inventó el Hipogrifo. Águila y león conviven en el grifo de los antiguos; caballo y grifo en el Hipogrifo ariotesco, que es un monstruo o una imaginación de segundo grado. Pietro Micheli hace notar que es más armonioso que el caballo con alas. Su descripción puntual, escrita para un diccionario de zoología fantástica, consta en el Orlando
Furioso: "No es fingido el corcel, sino natural, porque un grifo lo engendró en una yegua. Del padre tiene la pluma y las alas, las patas delanteras, el rostro y el pico; las otras partes, de la madre y se llama Hipogrifo. Vienen (aunque, a decir verdad, son muy raros) de los montes Rifeos, más allá de los mares glaciales". La primera mención de la extraña bestia es engañosamente casual: "Cerca de Rodona vi un caballero que tenía un gran corcel alado". Otras octavas dan el estupor y el prodigio del caballo que vuela. Esta es famosa:

E vede l'oste e tutta la famiglia,
E chi a finestre e chi fuor ne la via,
Tener levati al ciel gli occhi e le ciglia,
Come L'Ecclisse o la Cometa sia.
Géde la Donna un'alta maraviglia
Che di Ieggier creduta non saria:
Vede passar un gran destriero a!ato,
Che porta in aria un cavalliero armato'.

[Y vio al huésped y a toda la familia, / Y a otros en las ventanas y en las calles, / Que
elevaban al cielo los ojos y las cejas, / Como si hubiera un eclipse o un cometa. / Vio la mujer
una alta maravilla, / Que no sería fácil de creer: / Vio pasar un gran corcel alado, / Que
llevaba por los aires a un caballero armado.]

Astolfo, en uno de los cantos finales, desensilla el Hipogrifo y lo suelta.

(Jorge Luis Borges)
(Versão do Público de 15 de Março de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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