ABRUPTO

24.2.08


O LASER QUE PERSEGUIU RONALDO



O que é que é importante e o que é que é "espuma dos dias"? É um exercício perigoso e arriscado, não é bem futurologia, mas também não é apenas a mais segura análise do presente. O futuro é uma terra distante e o futuro tem muitas mãos a mexer-lhe. Por isso gente sensata não se põe a fazer de Maya ou Paulo Cardoso, nem de "mãe de santo", nem de general romano a mandar ler as entranhas de uma ave antes de uma batalha. Com o futuro tenho muito respeitinho, até porque tem o hábito de não andar por cá quando escrevemos sobre ele e depois chega quando não o esperamos. Tomem, pois, este exercício à conta de desespero noticioso.

Por onde é que anda o futuro? Uso como minhas vísceras de ave, ou cristais, que é mais elegante, o Público de ontem, um jornal que, declarando-se de referência, já é suposto fazer uma selecção de assuntos em termos de importância, logo de futuro. Deito fora de imediato as páginas de desporto. Duvido que "dois minutos à Benfica resolvem jogo praticamente perdido" dure mais que um dia ou dois, para além do enigma que para mim é este "à Benfica". O "Basileia caiu com estrondo", "faltaram golos para poder sonhar", o "laser que perseguiu Ronaldo", "bom arranque de Pedro Figueiredo faz sonhar..." e vários "líder" nos títulos tenham futuro. Tem graça esta secção de desporto, parece a página de poesia, cheia de "sonho", ou será a página Lopes-Menezes cheia de "líder"? Não sei. Devem ser as duas: a poesia que eles lêem e o "sonho" que eles têm. Adiante.

As páginas de economia estão dedicadas ao crime. BCP e "processo de fraude das falências" e a "fuga ao fisco que cria tensão entre a Alemanha e o Liechtenstein" são os destaques. Se fosse nos EUA, já teríamos visto os amáveis gestores a saírem das empresas de algemas. Na Europa, duvido. Futuro? O crime tem sempre futuro. O destaque do jornal também é dedicado à economia, ao crescimento da UE em 2008, uma análise macroeconómica dominada pelo medo da "estagflação", o fantasma que ensombra o mundo, diz o título, feito certamente de uma memória remota do início do Manifesto Comunista.



Um pouco mais de futuro já tem a notícia sobre a Greenpeace ir ter uma "antena virtual" em Portugal. Sempre pensei que isto das "antenas" era com os serviços de informação, mas a Greenpeace parece que está preocupada com o facto de Portugal ser "o país europeu que mais peixe per capita consome: 50 quilos por ano". Bem tem que se preocupar, porque com a moda elegante do sushi que invadiu a turma lisboeta dos que seguem a moda, vamos ficar o Japão da Europa e tornar a dar trabalho aos baleeiros dos Açores. Preparem pois as armas para a guerra entre os amigos da pesca e os amigos do peixe. E eu que pensava que peixe era bom para a saúde.

Deixei para o fim, a política nacional e a internacional, o "mundo" como se diz. Nós por cá todos bem, diz o poder, e todos mal, diz toda a gente que sobra. A SEDES escreve sobre o futuro: "Sente-se em Portugal "um mal-estar difuso", que "alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional". Este mal-estar e a "degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento". E se essa espiral descendente continuar, "emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever"." Ou seja, diz o mesmo que disse o general Garcia Leandro, sem as reminiscências do 28 de Maio e do 25 de Abril. Como todos sabem, eu faço parte da equipa dos pessimistas de quem o senhor primeiro-ministro falou com enorme enfado esta semana, por isso acho mesmo que há futuro nesta previsão. É por isso que os que dizem que a entrevista do primeiro-ministro foi um sucesso para ele, esquecem que, com este "mal-estar difuso", aquele tipo de discurso não só não cola como começa a ser contraproducente.

Depois, o resto do noticiário nacional tem muito crime e pouco castigo. Há os episódios seguintes da "telenovela venezuelana" no PSD, várias disfunções, coisas que funcionam mal e deviam funcionar bem, uma eterna fonte de notícias em Portugal. Há também os habituais passos de dança da coreografia nacional entre as quais a benemérita passagem das discotecas a "associações" para nelas se poder fumar. De resto, nada de relevo, espuma. Só espreita por cima da espuma esta complacência que se tem com António Costa, a mesma que sempre envolveu os "meninos de ouro" putativos sucessores no PS, Vitorino e Costa. Costa está a conduzir mal o processo financeiro na CM de Lisboa, mas o mau da fita é agora o Tribunal de Contas, que impede a câmara de pagar aos fornecedores, baseando-se numa lei do próprio Costa, quando, noutra encarnação, verberava os autarcas devedores e lhes cortava a colecta.

Por fim, chegamos ao futuro propriamente dito, ao "mundo", onde a selecção natural das notícias já nos garante alguma solidez. A começar pelo Kosovo, ilustrado com chamas. Os Balcãs são um perfeito exemplo de uma regra que convém não esquecer: onde há muito passado, há muito futuro. O vespeiro em que a UE se tem vindo a meter é um verdadeiro caso de estudo da inexistência de uma política externa europeia e da relação dessa ausência com a falta de expressão militar da União. Quem está a fazer a política para os Balcãs são os EUA, num dos casos exemplares em que uma política "europeia" teria sempre que ser diferente da americana. Mas como são os EUA que, desde a guerra da Bósnia, têm o músculo militar, por si e através da OTAN, que podem os europeus fazer diferente? Nada, balbuciam e dividem-se, com o directório a mandar. Por tudo isto ainda vamos ouvir falar muito desse protectorado dos EUA que é o Kosovo. E da UE como femme de ménage. Muito futuro, muito futuro, o recordista do futuro neste dia de jornal.
A maioria da opinião pública e de muita da comunicação social (aqui o Público é excepção) permanece indiferente à política externa portuguesa quanto ao Kosovo. O mesmo se poderá dizer da indiferença com que o PS e o PSD tratam esta questão, ainda por cima numa zona onde há tropas portuguesas que foram para lá baseadas num mandato que afirmava que o Kosovo era parte da Sérvia... Quem é que quer saber disso para alguma coisa? Agora o que eu queria saber é que pressão está a fazer o directório europeu, França, Alemanha, Reino Unido, para que países como Portugal reconheçam o Kosovo? Porque estão de certeza a fazê-la e eu estou longe de considerar que o reconhecimento do Kosovo corresponda aos nossos interesses nacionais. Por muito que isso pareça contra-intuitivo em relação à nossa história, não é do interesse nacional qualquer coisa que ajude à fragmentação da Espanha.
Muito futuro, tanto futuro quase como o Kosovo, é a destruição de um satélite perdido por um míssil disparado de um navio americano. Um teste real que qualquer militar desejaria fazer e que pelos vistos correu bem, mostrando que os EUA avançam na sua capacidade anti-satélites, uma vantagem estratégica fundamental. Os russos acusaram o toque, como é óbvio. De resto, Paquistão, Marrocos e Al-Qaeda continuam nas notícias, como era de esperar, vem do passado, estendem-se para o futuro. Mais "tempos interessantes" da maldição chinesa, a caminho por esses lados.



Podemos agora pôr o futurómetro de lado. Pensando bem, o que é que é estranho nisto tudo? Há a história, como de costume, com a sua assinatura caótica que estamos sempre a querer ordenar a posteriori. Mas estranho, estranho, meus amigos e leitores, estranho é o presente em que vivemos, em que um "laser perseguiu Ronaldo". Aí está aquilo que nunca passou pela cabeça ao Deus da História, ao Professor Hegel, às Parcas, ao Destino Manifesto, seja lá ao que for. É por isso que o mundo nunca nos aborrece e é sempre interessante.

(Versão do Público de 23 de Fevereiro de 2008.)

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(...) Confesso, no entanto, que não entendi porque a UE vai ser a "femme de ménage" no Kososvo. A dúvida ou divergência não é de substância, é linguística. Escapa-me porque não utilizou você, a expressão mulher-a-dias e teve de se socorrer de duma expressão fracesa desnecessária. Cá para mim, complexo freudiano, de quem acha que os deputados no Parlamento Europeu em Bruxelas, podem e devem ter uma femme de ménage, talvez vinda da Sérvia, do Kosovo ou da Albânia; mas os intelectuais portugueses devem ser ele próprios a engraxar os seus próprios sapatos, e pôr as peúgas a lavar na máquina. Que é o que eu faço.

(Pedro K(C)osta Ferreira)

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(...) estou a ler ou melhor ouvir "Die Geschichte Deutschlands im 19. und 20. Jahrhundert" de Golo Mann. Não sei se já leu, não sei se está traduzido em português, mas é certamente uma obra que me tira a respiração: lucidez, informação fide digna, um alemão cristalino. Extraordinário para a comprehensão da história europeia, porque nos faz perceber os meandros sem entrar em fundamentalismo teórico.

(Monika Kietzmann Lopes)

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A apatia dos dois grandes partidos portugueses, da opinião pública em geral e da imprensa (com uma ou outra excepção), sobre a questão do Kosovo, infelizmente não é grande surpresa. Mesmo a imprensa que lhe dedicou alguma atenção, não deu o devido destaque à sui generis "posição comum" europeia e à sua muito peculiar forma de respeitar a legalidade internacional. Nas conclusões sobre o Kosovo da reunião nº 2851 do Conselho da União Europeia efectuada em Bruxelas, a 18/02/2008, podemos ler que "O Conselho saúda a continua presença da comunidade internacional baseada na Resolução nº 1244 do Conselho de Segurança".

O que o texto se "esqueceu" de dizer é que na Resolução nº 1244 (1999) deste órgão das Nações Unidas se afirma, claramente, logo nas considerações iniciais, "o comprometimento de todos os Estados-membros com a soberania territorial e integridade da República Federal da Jugoslávia", o que não foi propriamente o caso. Quanto à posição comum sobre o Kosovo da UE, uma leitura rápida do texto mostra também que esta basicamente consiste em que cada "Estado-membro vai decidir, de acordo com a sua prática nacional, e de acordo com a lei internacional, as suas relações com o Kosovo".

Numa linguagem mais terra-a-terra que qualquer pessoa compreende, a posição comum é... cada cada um fazer o que bem entende em relação ao Kosovo. Percebe-se por que a UE, com este tipo de "posições comuns", é de facto o grande actor da política internacional que todos nós conhecemos. Para além disso, o texto da resolução do Conselho, vinda de uma organização preocupada com o respeito do Direito Internacional e a moralidade na política internacional, não deixa de saber também a um belo exercício de cinismo político.

Uma outra ironia disto é que a UE - uma organização que ambiciona federar os povos europeus -, apoia não uma federação entre sérvios e kosovares, mas a secessão destes últimos, promovendo uma Europa que, em vez de se unificar, cada vez mais se fragmenta (o Kosovo é o sexto estado a emergir da ex-Jugoslávia). Outra contradição, também notória, reside no facto de apoiar a unificação de cipriotas gregos e turcos, ao mesmo tempo que a apoia a separação de sérvios e kosovares. A consequência natural desta política é dar argumentos e legitimar a pretensão (ilegal face ao Direito Internacional) dos cipriotas turcos sobre o reconhecimento «República Turca de Chipre do Norte», predispondo-os para a não reunificação, e tornado o problema de Chipre insolúvel.

Quanto ao Kosovo, não sei se os europeus (e norte-americanos) pensaram nisto a médio ou longo prazo - infelizmente, parece que perderam esse hábito -, mas uma coisa parece bastante óbvia: ou assumem a difícil tarefa de construção de um estado e de um protectorado ab eterno do Kosovo (com o necessário envolvimento político, militar e de ajuda económica e social - neste sentido a declaração de independência foi mais uma "declaração de dependência" da UE e dos EUA), ou então, mais tarde ou mais cedo, este será uma porta aberta para a projecção da influência árabe e islâmica no sudeste europeu. Pior do que isso, se o Kosovo engrossar o número de estados falhados poderá tornar-se numa porta de entrada por onde o islamismo radical vai tentar entrar na UE. Será que este foi um risco calculado?

(José Pedro Teixeira Fernandes)

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