ABRUPTO

10.2.08


NÃO, NÃO ESTAMOS NOS NOSSOS MELHORES DIAS

Lá fora está um esplêndido dia de Inverno, com uma luz do Sol que faz brilhar todos os contrastes, todos os limites, separando cada coisa com uma clareza que só o frio permite. A noite anterior também estava assim, escura e nítida, e, sem a poluição luminosa que já de há muito nos impede de olhar o céu, podia-se ver como a máquina do mundo rodava perfeita, com Orion, a grande constelação do Inverno, presidindo. Mas a memória, a inimiga das veleidades da novidade, lembra-me um ditado que aprendi na escola primária do salazarismo: "Em Janeiro, se vires verdejar põe-te a chorar, se vires terrear, põe-te a cantar." E verdeja já um pouco por todo o lado, e as andorinhas já começam a voltar, e percebe-se que falta pouco para as árvores se convencerem de que estão na Primavera. Pensando bem, devia levar as andorinhas a ver o filme do Al Gore para as convencer de que não são as aparências do tempo que contam, desreguladas que estão pelos sinistros neoliberais que querem aquecer a tampa do mundo, mas sim as realidades do calendário. E que ainda é Inverno, ainda é Inverno. Não, não estamos nos nossos melhores dias... Não eu, que estou bem e recomendo-me, mas eles, lá fora, as andorinhas, Portugal, o mundo.

A colheita dos últimos dias "verdeja" à superfície de coisas um pouco sinistras: o processo de Isaltino de Morais voltou quase à estaca zero, mais uma vez, ao fim de não sei quantos anos, e não acontece nada. Vários crimes de que era acusada Fátima Felgueiras prescreveram entre os passeios pelo Brasil, as mudanças de visual e as peregrinações a Fátima dos felgueirenses, patrocinadas pela "Fatinha". E não acontece nada. O Ministério Público arquivou o processo de agressões ao vereador de Gondomar, continua a não se saber quem o agrediu, mas isso não deve ter importância, porque não acontece nada. Cravinho faz uma crítica duríssima aos seus colegas de bancada por sabotarem qualquer legislação contra a corrupção. E não acontece nada. De passagem, o mesmo Cravinho põe em causa com todas as letras o comportamento do LNEC, a quem acusa de ter moldado as conclusões às vontades do poder político, falsificando o seu relatório sobre o aeroporto por omissão de despesas. E não acontece nada. O bastonário da Ordem dos Advogados falou alto de mais e obrigou a mais uma ronda de lip service sobre a corrupção dos ricos e poderosos, que muito provavelmente vai dar origem a mais uma... Comissão. E não acontece nada. O mesmo bastonário acrescentou um caso muito interessante de como se ganha dinheiro em Portugal, o prédio vendido de manhã pelo Estado aos privados e vendido à tarde pelos privados a outros privados com mais cinco milhões em cima e, pelo meio, consultores e assessores do PS e do PSD. E não acontece nada. O Público mostrou a obra arquitectónica do engenheiro Sócrates, (vale a pena este vídeo) por coincidência toda no distrito da Guarda, apesar de ele ser funcionário da Câmara da Covilhã e dirigente partidário do distrito de Castelo Branco. E não acontece nada. Depois, há o ciclo do governo PSD/PP com os seus sobreiros, submarinos e um casino dado numa noite de despachos que adormeceu ainda com o governo Santana Lopes/Portas e acordou com o governo do engenheiro Sócrates, porque era o dia do fim dos tempos, o Gotterdamerung da coligação despedida por Sampaio e por milhões de portugueses. E não acontece nada. Do lado do "dar" está o Estado, do lado do "receber" está a Estoril-Sol, os Espírito Santo, a Lusoponte, o Futebol Clube Felgueiras, etc., etc. Não, não estamos nos nossos melhores dias...

Pensando bem, não admira que, com este dia-a-dia, fiquemos tão intimamente absurdos como os maoístas nacionais, nos quais eu me incluía, que queriam derrubar o "quartel-general" à força de dazibaos. O nosso maoísmo dos dias de hoje é, imagine-se, o glamour da monarquia. Não a inglesa, nem a sueca, nem a do Brunei, o que ainda se percebia, mas a dos Braganças, o que não se percebe de todo. Não, não estamos nos nossos melhores dias...

Numa daquelas reviravoltas que a moda faz à história, sim, que a história é muito de modas, passou-se da versão carbonária à versão ao modo do Senhor Dom Duarte Nuno. Tudo isto a propósito desse bom homem que matámos há cem anos, o Rei D. Carlos, agora o Senhor Dom Carlos, Rei de Portugal. Uma pequena multidão descobriu as maravilhas da monarquia, muda o nome de Ataíde para Athayde, de Rui para Ruy, passeia o seu blaser nos grandes escritórios de qualquer coisa burocrática que eles acham que não é burocrática, negócios, auditoria, advocacia, aconselhamento fiscal, project finance, com o emblema da Causa Monárquica na lapela, dobrando a voz todas as vezes que diz Senhor, como em Senhor Dom Carlos, indo a missas para esconjurar os jacobinos e os carbonários, convencidos de que os regicídas eram a encarnação da Al-Qaeda da época e que Portugal seria um grande país caso não houvesse aqueles tiros junto ao Tejo.

O Rei D. Carlos era um homem estimável, com boas virtudes e dedicações científicas e estéticas pouco comuns nos Braganças, com pecados simpáticos, que foi um crime matar e que mais do que merecia a banda militar a tocar nas cerimónias? De certeza que sim, mas não o façam ser o que não foi. Oh! Homens e mulheres do Senhor arredondado, para os regicidas da época aconselho um dos melhores e mais fascinantes textos de Eça, ao modo de Jorge Luís Borges, perdido nas Notas Contemporâneas, sobre o assassino de Canovas del Castillo, ou o Agente Secreto do genial Conrad, para se olhar para estas coisas com outros olhos, nem carbonários, nem beatos.

Para o resto, peguem numa lupa e vão ver as fotografias dos "palácios reais", as fotografias dos grandes e médios eventos desses anos finais da monarquia e podem continuar pela República e pelo Estado Novo dentro e vejam o Portugal que lá está ao lado da Família Real nos vasos partidos segurados com arame, nas louças com "gatos", nos jardins pouco cuidados, nos espelhos com a prata gasta, nas roupas puídas e usadas, nas decorações erguidas de madeira e papelão, no tom de abandono, descuido e pouca limpeza, que nem a hierarquia do upstairs e do downstairs servia para funcionar bem, não porque não houvesse muita criadagem, mas porque faltavam os mordomos ingleses. Esse mundo que tomam por brilhante e cosmopolita era o mesmo Portugal que hoje pretendem esconjurar porque "feio, porco e mau", o mesmo Portugal - oh sinistro adjectivo! -, "piroso", de que pensam fugir conhecendo os vinhos de casta, comprando relógios Patek Philipe para entesourar, caçando vestidos de duendes verdes, fazendo subir o preço do Almanaque de Gotha nos leilões, e passeando-se por resorts e spas. Não, não estamos nos nossos melhores dias...
Nas procuras que fiz na Rede para a publicação deste artigo precisava de uma capa do Almanach de Gotha original ( e não a versão inglesa que se publica depois de 2000 e que é uma desgraça, cheia de erros) e não encontrei nada de decente. Há uma entrada que me parece razoável na Wikipedia, mas em várias tentativas não arranjei uma capa razoável do verdadeiro Almanach, o anterior a 1944, que acabou "ocupado" pelo Exército Vermelho. É um pouco estranho que na Rede, em que há imensa coisa, não haja nenhuma capa. Valia a pena estudar não só que está em linha como o que não está. Na minha biblioteca familiar há para aí uns dez exemplares, quase todos do século XIX e um deles mesmo do principio do século, mas não tenho aqui nenhum à mão. Eram muito volumosos e muito pequenos, quase um cubo sólido numa estante, com a sua capa imediatamente reconhecível entre o vermelho e o carmim e com uma coroa gravada a ouro. (Depois disto escrito por cortesia do leitor João P. Carvalho chegou-me uma referência a uma capa do Almanach.)
Salva-nos o mundo? Não, não salva, a não ser que Barack Obama, que em Portugal tem o maior número de admiradores por metro quadrado da Costa Leste dos EUA para cá, ganhe as eleições. Obama, aquilo que a esquerda europeia pensa que é a esquerda americana, é a última esperança do mundo, tão esperançosa que levou muita gente a trair os Clinton, aquilo que a esquerda europeia pensava que era a esquerda americana antes de Obama aparecer. Soares vota em Obama, Jorge Coelho vota em Obama, Marcelo vota em Obama, o BE vota em Obama, as redacções da TSF, da RTP, da SIC, do Diário de Notícias, votam em Obama. E as outras também. Pensam que Obama vai lá chegar e com a varinha mágica da Utopia e da Esperança, o seu grande mérito a julgar pelos comentários, vai acabar com a guerra no Iraque, a Al-Qaeda, a recessão e as lojas dos chineses, reconhecer a União Europeia como parceira mundial dos EUA e propor Barroso para o Prémio Nobel, dizer "porreiro, pá" ao nosso engenheiro, reconciliar Mário Soares com os EUA e pôr ordem nos israelitas.

Está bem, está na altura de acordar, mas como é que se pode acordar quando toda a gente quer continuar a sonhar? Não, não estamos nos nossos melhores dias...

(Versão do artigo do Público de 9 de Fevereiro de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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