ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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13.1.08
Está em curso um pouco subtil ataque à independência da opinião, no qual desaguam várias águas, todas convergentes: as do Governo, caudalosas, intimidantes e varrendo as margens; as da actual direcção do PSD, um pouco para o negro e tóxico; e as dos que acham que não têm lugar no escasso mundo da influência, apesar do seu génio, porque outros o ocupam e pescam em todas as águas por um lugarzinho ao sol. Os alvos são eu próprio, António Barreto e Vasco Pulido Valente. Falo por mim, porque os outros não precisam de procuração e sabem muito bem o que dizer. Por singular coincidência, são críticas ao Governo e à aproximação do PSD ao bloco central que estão em causa, são críticas ao ambiente autoritário e de subserviência que incomodam, é a denúncia do controlo do espaço público pelo establishment que não pode ser apontada. É a violação das regras não escritas da complacência e conformidade, do respeitinho, que deve ser punida. Depois, há uns inocentes úteis, à esquerda e à direita, muito mais fáceis de domar pelo poder, até porque não têm audiência nem autoridade, que pensam que agora é que é a sua oportunidade e ajudam à festa. Não é nada que não tivesse acontecido no final dos vários tempos, de Cavaco, de Guterres, de Barroso-Lopes, e que teve como episódio maior o afastamento de Marcelo da TVI e as grandes manobras do Diário de Notícias na mesma altura. Agora que o Governo e os seus alter-egos na oposição começam a conhecer as suas reais dificuldades é que é a sério. Sempre foi assim. Há um momento em que tudo deixa de ser a feijões e nessa altura não se brinca em serviço. Ao ar vão as amabilidades, usam-se as armas públicas e acima de tudo as menos públicas, as pressões sobre os órgãos de comunicação social, os ataques de carácter ad hominem, os processos, as tácticas de isolamento dos desobedientes. No "politiquês" há uma palavra para isto, "crispação". Agora que começam todos a ficar "crispados" atribuem-se as culpas aos do costume, por não se sentirem motivados pelo excelso optimismo do Governo, pelas virtudes sarkozianas do "líder da oposição", pela maravilha de país da West Coast da Europa que nos calhou em sina. Os culpados são uns "velhos do Restelo", sem humor, uns pessimistas frustrados, que queriam ter uma gloriosa carreira pública, mas que não ganham eleições como o engenheiro Sócrates ou o dr. Lopes e vivem roídos por isso, uns intelectuais que só escrevem livros, o que, como se sabe, não é trabalho decente, e que nunca tiveram oportunidade de fazer festas, piscinas e centros de congressos com dinheiros públicos, deixando os municípios endividados por décadas, nem de darem computadores nas escolas, extorquidos por pouco subtis pressões às empresas que precisam do Plano Tecnológico e que também têm que pagar, como os empreiteiros obrigados a dar uma loja à câmara para fazer um edifício. Esses ressentidos subversivos que só sabem dizer mal sentem o mundo a cair à sua volta e não são capazes de ver o imenso mérito dos tempos modernos, quer do engenheiro tecnológico, quer dos modernizadores que querem partidos SA com cibercafés nas sedes, quer dos pensadores-engraçadistas que imitam os Gatos Fedorentos e o Inimigo Público e pululam nos blogues e nas televisões. O que é que os "velhos do Restelo" têm que irrita particularmente? Primeiro, poucas ilusões, o que não é propriamente um mérito, é mais para o lado da desgraça, mas não há volta a dar. Nisso, de facto, estão velhos e já viram tanta coisa que não se lhes pode pedir que pensem como o secretário de Estado que resolveu disciplinar os reformados dando-lhes 68 cêntimos por mês em nome da racionalidade dos gastos e da sua alta visão. Foi preciso um velho, que também não deve ter muitas ilusões, o ministro da pasta, para terminar com essa patetice em 24 horas, porque ele sabe o que é um reformado e o jovem imberbe não. Depois, uma atitude, que hoje se considera cada vez mais bizarra e antiquada, face à liberdade. Prezam a liberdade de uma forma que só pode ser prezada por quem não a teve, e isso também não há volta a dar, só acaba com o túmulo. Nunca falarão de Salazar, da censura, da polícia, com a displicência yuppie dos nossos dias. Não têm "distância", embora o arranque da historiografia e da sociologia para fora das baías do antifascismo e do jacobinismo se lhes deva em parte, quando a academia permanecia gloriosamente dominada pelo PCP e pelos esquerdistas. Aquilo que, na sua imensa ignorância, alguns consideram ser as ideias dos anos 60, o mal que Sarkozy e os seus imitadores querem extirpar, é uma noção individual da liberdade, um gosto pela vida autónoma, uma vontade de não depender de ninguém, uma desconfiança natural da autoridade presumida e arrogante, que sempre foi mais forte do que o invólucro radical desses mesmos anos. Por estranho que pareça, esta liberdade libertária tem continuidade na profunda convicção de que a revolução dos costumes desses anos, o que deles vai ficar, só é garantida pela riqueza, riqueza de dentro, a "cultura", esse termo tão abastardado, e riqueza de fora, posse das coisas, de bens, do tempo próprio. Essa liberdade antiquada é vista quase como um atavismo, um resquício do pecado original inexpiável de terem sido comunistas, maoístas, esquerdistas, ou suspeitos anti-salazaristas e terem abandonado esses lugares do crime 20 anos antes do dr. Pina Moura, que, pelos vistos, o fez no tempo certo. O absurdo é ver ataques a António Barreto por ter sido comunista há 40 anos, ele que foi o alvo principal do PCP, junto com Soares, na questão da Reforma Agrária. Não adianta sequer dizer à ignorância impante que, com excepção de meia dúzia de conservadores, poucos, aliás, a "luta final" que terminou em 1989 com a queda do Muro de Berlim, como escreveu Silone, foi mais entre comunistas e ex-comunistas. Os grandes textos simbólicos contra o comunismo, O Retorno da URSS, O Zero e o Infinito, o 1984 e O Triunfo dos Porcos, vieram de homens como Gide, Koestler e Orwell. Nos momentos mais duros da guerra fria, os ex-comunistas e os liberais mais radicais com quem se aliaram foram os únicos a travar o combate intelectual contra a hegemonia intelectual comunista. Revistas como o Encounter ficaram como exemplo dessa aliança em tempos bem mais difíceis do que os de hoje. E que, nos momentos decisivos do fim do império soviético, quando o expansionismo soviético conheceu o seu espasmo agressivo entre o Afeganistão e Angola, só ex-comunistas, como Mário Soares, e ex-maoístas lutaram contra a URSS, a favor de dissidentes soviéticos como Sakharov, em Portugal, em França com os "novos filósofos", mesmo nos EUA, onde muitos neocons vinham da esquerda radical americana. Depois os "velhos do Restelo" são também antiquados por não gostarem muito da redução da política ao marketing, à publicidade e à substituição da decisão política pela parafernália da gestão da imagem, das sondagens e dos aconselhamentos pelas agências de comunicação. Tendem a ver a substituição dos órgãos políticos de decisão, eleitos e tendo que prestar contas, por gabinetes de assessores e agências de comunicação, por spin doctors e "marqueteiros", como uma degradação e uma opacidade. Não gostam dos homens de plástico que nos vendem hoje e do mundo de plástico que vem com eles. E isso gera um conflito de interesses com o crescente papel no mundo comunicacional dos profissionais da propaganda moderna e dos políticos que se moldam a esta realidade "comprando" a sua imagem. Há muitas outras razões, como a de não serem fáceis de encaixar nas categorias a preto e branco das classificações esquerda-direita, uma perturbação para a ordem do mundo e dos regimentos em combate, mas o defeito maior está na sua independência feita de muitos "nãos" e pouco sensível à lisonja e aos consensos beatos em que vivemos, entre a "cultura", os negócios e a política. Por isso, se não estivessem por cá, tudo seria muito melhor, mais "moderno" e mais construtivo. Para que não restassem dúvidas sobre a radicalidade das suas críticas (e preocupações), António Barreto e Vasco Pulido Valente repetiram-nas hoje de forma inequívoca:(Versão do Público de 12 de Janeiro de 2008.) (url)
© José Pacheco Pereira
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