ABRUPTO

27.1.08


MEMÓRIAS

Durante uma visita que fiz à Argélia, fiquei alojado numa casa de hóspedes do Estado em Argel, uma casa magnífica numa colina sobranceira à cidade. De manhã, saía do quarto, abria a porta da varanda e era de parar a respiração, a outra "cidade branca" desdobrava-se junto ao mar, tão mediterrânica que doía de história. De noite era a mesma coisa, ficava ali a ver as luzes, o calor tépido, os sons, os barcos no porto. Um dia, de manhã, tomava o pequeno almoço com um quadro histórico da FNLA, um velho daqueles que vira tudo, tão europeu como patriota, que falava um francês límpido e um árabe menos límpido, entrecruzado com palavras francesas como era habitual em Argel, radical de esquerda, laico e incréu, quando um homem entrou na sala. Era um velho de cabelos brancos, alquebrado e de muletas, acompanhado de um grupo de jovens que se percebia serem guarda-costas. O meu interlocutor e os outros argelinos na sala levantaram-se com imenso respeito, beijaram-no ao modo tradicional e trouxeram-no para a mesa, com um grande cuidado com a sua dificuldade de andar. Era al-Hakim, o doutor.

Apresentaram-me, mas não o apresentaram, e seguiu-se uma conversa de um quarto de hora, de que tenho notas algures, sobre Portugal e as relações com o mundo árabe. Nem uma palavra sobre a Palestina, mas eu tinha reconhecido George Habash e lembro-me de ter pensado na estranheza daquele encontro com um homem procurado por meio mundo e, ao olhar para a grande vidraça da sala, que ficava debaixo dos quartos, pensar o que seria entrar por ali um comando israelita. Se fosse hoje, seria um míssil cruzeiro, mas na altura a tecnologia das armas inteligentes, ficava-se pelos homens. Na época, estar ali com Habash era o equivalente a estar hoje a tomar chá em Tora Bora com Osama bin Laden.

Depois, saí para um compromisso qualquer, e lá ficou o "doutor", que tinha aquela delicadeza de trato que várias vezes vi nos palestinianos educados, falava baixo, gestos muito limitados pela sua fragilidade física, a quem todos mostravam admiração. Na verdade, a Argélia estava, e penso que ainda está, em estado de guerra com Israel. Habash era um herói dessa guerra.

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© José Pacheco Pereira
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