ABRUPTO

6.1.08


DOCUMENTOS PARA UMA DÉCADA TRISTE

Daqui a 20 anos, na verdade daqui a menos anos, porque tudo se acelera, é suposto haver estudos sobre os anos da década triste que vai do fim anunciado de Guterres ao princípio da erosão de Sócrates. Como todas as décadas tristes, não estou certo se não durará mais do que uma década, mas vamos pressupor, quase desejar, que se fique por dez anos. Que sobrará desta época que lhe dará o Zeitgeist, mais uma palavra daquelas que só o alemão é capaz de dar, o que retratará o "espírito do tempo", quando ele voa baixo, baixinho?

O que revelará melhor do que tudo esta década está em grande parte na Rede, não está em papel, mas em filmes que sobrevivem no YouTube, em blogues, em páginas pessoais, o que coloca a questão da preservação da Internet em português pela Biblioteca Nacional ou por qualquer outra instituição pública que é suposto assegurar o património da nossa memória colectiva. Há anos que levantei esta questão e tudo permanece na mesma, e o que não se perdeu, devido em grande parte às próprias características do espaço da Rede, que não gosta de esquecer e mantém quase tudo, nem sempre é fácil de encontrar. Este é hoje um dos grandes desleixos patrimoniais do Estado português.

O que acontece é que, mesmo quando os mesmos filmes, ou as mesmas gravações áudio, existem nos arquivos de qualquer televisão ou rádio, é a sua forma em linha, por exemplo, enquanto filmes do YouTube e não enquanto programas de televisão, que lhes deu o valor histórico, ou, para usar uma palavra mais cara, icónico. Foi assim que foi consumido, retrabalhado, remisturado e consumido num meio que pode ser distinto do inicial. Esta prova de sobrevivência em rede cria novos mecanismos de selecção e visibilidade, que não seguem necessariamente as regras da produção original. Talvez o melhor exemplo disso seja a história de sucesso do sketch do Gato Fedorento sobre Marcelo e o aborto, vindo da televisão para o YouTube, e o insucesso do filme de Marcelo feito de propósito para o YouTube, mas com as regras da televisão clássica.
Muito do que ficará serão imagens, porque este tempo é um tempo de imagens. Mesmo o som, dado o carácter fluido e efémero da rádio, só sobrevive muitas vezes quando sobreposto em imagens, uma técnica comum no YouTube. O parente pobre é a escrita, embora os blogues se tenham acrescentado ao património da memória, não só por serem escrita, mas pela sua forte ligação com o tempo presente, presos ao dia-a-dia.


Nesse arquivo da década triste ficarão certamente cenas da televisão do Pathos, como o contínuo de "masturbação da dor" ocorrido com a queda da Ponte de Entre-os-Rios e os casos de crianças, uma novidade da década. A entrada em cena da pedofilia como crime máximo, crime dos crimes, trouxe para uma ribalta iluminada por uma luz muito negra a criança como símbolo máximo da violência e da disfunção da sociedade, como alvo do Mal absoluto. O caso da Casa Pia, o caso Joana, o caso Maddie, o caso Esmeralda e, ainda que de uma forma perversa, a questão do aborto, trouxeram um mundo de sombras que parece mais um teatro do medo colectivo do que uma questão de crime e castigo. Se tivermos em conta que um dos traços que se acentuaram nesta década triste foi a infantilização cada vez maior do mundo dos adultos, temos montado um palco entre o filme de terror e a casa das bonecas ou variantes do Action Man.

Crianças e adolescentes, teenagers que se recusam a envelhecer, ficarão nos documentos da actualidade, porque este é o seu tempo. No YouTube mantém-se esse fabuloso documento para a história portuguesa que é o "Menino Guerreiro", a que se deve somar o "discurso da incubadora" e o blogue Pedro Santana Lopes, todos dominados por uma pulsão de crise, vitimização, afirmação, obsessão narcísica, verdadeiros mostruários psicológicos e humanos de uma década que conheceu o seu autor como primeiro-ministro de Portugal. Quer o karma, quer a repulsão se percebem muito bem nestes exemplos ingénuos do efeito da espectacularização da vida pública e da sua "patologia".

Nesta antologia de imagens de identidade ficarão igualmente os festivais de bandeirinhas nacionais made in China, com pagodes em vez dos castelos, que, de uma ponta a outra do país, celebraram a pátria através do futebol, que entrou para o espectáculo público como versão moderna do circo, como nunca se vira desde os tempos salazaristas. E entrou Salazar, revisto como estrela pop, também ele pelo mecanismo do espectáculo circense, ele que o percebera fora da época dizendo que "em política o que parece é"... E entrou o nosso jet set, com a sua estética própria personificada no "Conde", que mais cedo ou mais tarde chegará a um volume da Taschen, entre as quintas dos reality shows e as fotografias encenadas, sempre mais próximo de Paris Hilton do que dos comensais dos restaurantes finos de Nova Iorque de que falava Capote.

Ficarão algumas escutas colocadas em papel. A voz do telefone, ou melhor, a voz do telemóvel que fala diferente da do telefone fixo, transcrita para o papel, ganha uma imediaticidade violenta, brutal. Nos processos da década, Casa Pia, Apito Dourado e outros, a transcrição das escutas em papel, permitindo-nos ler a voz que nunca pretendia ser pública, o eco da nossa própria voz apanhada em falta, humilhada, envergonhada em público, exerce um efeito de revelação poderoso. Esse efeito é ampliado pelo contraste com uma comunicação que oscila entre o pomposo nos actos públicos e o "gerido" por assessores e agências de comunicação. O efeito de veracidade das escutas incomoda e assusta como pouca coisa que hoje se possa colocar no papel. Lembra-nos o 1984.

Antero Henriques (A) - Foda-se! Não dormi um caralho! Estou com uma enxaqueca, pá. Pinto da Costa (PC) - Filhos da puta.... [...] Tínhamos morto esta merda ontem [...] A - Embora eu ache que o Mourinho, no final, também se exaltou muito! PC - É, um bocado. A - É! Aquela história de dizer que o Rui Jorge morreu em campo e... PC - Ele disse aonde? A - Ele diz que disse cá em baixo, disse cá em baixo, junto a... quando estava a malta toda ali! Mas eu liguei para a 'Bola' e para o 'Jogo' a desmentir! A dizer que ele estava a dizer que era mentira! PC - Não, não! Não... não é desmentir! A gente tem é de processar o gajo que diz! [...] A - É... e em relação à camisola, também tem de se arranjar ali uma tanga, presidente! PC - Arranjar que ele foi provocar para a porta do balneário! A - É. E que o Mourinho disse que: "Esta camisola é indigna de ser trocada. Porque se a tivesse rasgado não a mandava outra vez para o balneário do Sporting." [...] É! Temos de arranjar aí uma tanga, senão saímos por baixo desta merda toda. PC - Mas já falou com o Mourinho, não? A - Não, não, não. Vou agora com ele ver o Rio Ave, agora, às quatro horas! PC - É... mas diga-lhe, é pá! Ele que não preste dec... diga-lhe só... A - Não, por isso é que vou com ele! Por isso é que vou com ele! PC - E amanhã é um processo-crime contra... A - É... PC - Esse Bettencourt e os jornais carago! A - É que esse gajo é mesmo um cobarde!

(transcritas no Correio da Manhã)
Ficarão blogues, eles também não isentos das doenças infantis do nosso tempo, do engraçadismo e do radicalismo posicional juvenil, mas "arquivando" muito do Zeitgeist. Para o debate político, os blogues trouxeram novidades que marcaram o tempo, como a discussão sobre a guerra do Iraque na Coluna Infame e no Blogue de Esquerda, a abertura para o pensamento liberal, ou a estreia de um debate presidencial pela primeira vez ocorrido na Rede com produtos genuínos e não encomendados, como foram os blogues Pulo do Lobo (pró-Cavaco) e Super Mário (pró Mário Soares).

Fora dos blogues, a decadência da relevância da palavra escrita continuou, o que é típico de tempos em que quem quer dizer alguma coisa vai à televisão ou dá uma entrevista. Tomar uma posição por escrito, seja um artigo, seja uma carta aberta, seja uma declaração, está em desuso. No entanto, alguns artigos ficarão na memória da década, em particular os de Cavaco Silva sobre o "monstro" e sobre a "boa e má moeda", e ficarão colunas de opinião que dão o "tom" ao nosso tempo, como é o caso da de Vasco Pulido Valente.

Olhada no seu conjunto, a década triste não é brilhante nos seus produtos, nos seus ícones, mas também seria impossível que o fosse. É uma década em que se andou para trás, se perdeu alguma coisa do adquirido, se esgotaram algumas das últimas esperanças. É uma década de escapismo do fim, de gozar os últimos tostões, de aceitar o remedeio, quase de desejar o remedeio para não se voltar à pobreza. Vistas bem as coisas, nesta década, que não segue o calendário formal mas o do Zeitgeist, o futuro parece correr depressa de mais para o presente e deixar-nos para trás. Podemos sempre ir meditar para um mosteiro, dedicarmo-nos ao budismo zen, fazer como os coelhos sem fazer muitos coelhinhos, ou enfiar uma qualquer felicidade química directamente no cérebro. Até podia ser pior.

(Versão do Público, 5 de Janeiro de 2008.)

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© José Pacheco Pereira
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