ABRUPTO

9.12.07


"NÃO É GRANDE DESCONSULAÇÃO BUSCAR E NÃO ACHAR?"


Nestes tempos em que as grandes palavras da moda estão associadas aos aparatos tecnológicos, em particular às tecnologias de informação e à Internet, as ciências humanas, a filosofia, as artes, a literatura, o corpo clássico da escrita e do saber estão, por assim dizer, fora de moda. Isso vê-se quando se discute o muito falado Plano Tecnológico, um dos símbolos da governação Sócrates (e dos seus alter-egos no PSD), muito hábil com telemóveis, computadores, gadgets e devices, mas pouco sensível àquilo que, com alguma comiseração, hoje se nomeia de "conteúdo". É a forma, o instrumental, o brilho das luzinhas e a rectidão perfeita dos lasers que os entusiasma, perpetuando assim mais uma vez o divórcio das "duas culturas" que no passado pendia para a ignorância científica e para o sebentismo nas humanidades e hoje pende para o deslumbramento tecnológico e para a extinção das humanidades. Nem uma, nem outra "cultura" da clássica divisão de C. P. Snow existem como cultura sem se olharem entre si.

Um caso deste menosprezo pelas humanidades está no "conteúdo" em português na Rede, que omite quase por completo a nossa literatura, o que significa que o "português" é uma língua pobre na Internet. Com uma excepção, e uma excepção que vale tanto que podia ser considerada uma regra, que é a do esforço dos brasileiros em prol da sua língua e literatura que inclui também a nossa. Como se verá, alguns dos nossos grandes escritores só estão na Rede porque os brasileiros aí os colocaram.

Vou fazer um exercício simples, que qualquer pessoa pode fazer sem ser académico e evitando o academismo: escolher dez nomes consensuais no triplo sentido de serem grandes escritores em português, serem autores-referência do corpo da própria língua e fazerem parte do nosso espelho colectivo, fautores de identidade nacional. Escolhi Fernão Lopes, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Bernardim Ribeiro (podia ser Sá de Miranda...), os autores da História Trágico-Marítima, Francisco Manuel de Melo, os padres António Vieira e Manuel Bernardes, Frei Luís de Sousa e Bocage. É uma lista que tentei fazer na base da minha memória escolar do ensino do Português no Liceu Alexandre Herculano, nos anos sessenta. A lista exclui Camões e fica-se cronologicamente pelo princípio do século XIX, porque a contemporaneidade mereceria ter um tratamento próprio para o qual não há espaço neste artigo. Com estes nomes vou fazer uma simples pesquisa no Google, como qualquer estudante ou leitor interessado faria, consultando os primeiros 20 resultados e não usando nenhum dos instrumentos de procura mais sofisticados que podem acrescentar mais um ou dois resultados, mas não alteram o panorama.
Não há duas procuras iguais no Google, o que significa que não é possível reproduzir no dia seguinte os resultados do dia anterior. No entanto, sucessivos resultados em diferentes dias não alteram o essencial do que o Google "responde" e do que lá se encontra.
Isto significa que só chegarei a repositórios como a Biblioteca Nacional Digital quando o Google para aí me encaminhar, porque o problema de colocar autores em linha não é apenas o da edição dos seus textos mas o da sua acessibilidade através de procuras simples. Isto leva a excluir muitas edições fac-similadas (em formatos JPEG por exemplo) , ou mesmo em PDF, que não possam ser procuradas pelo seu texto e que exigem algum tempo para serem importadas sem ser em banda larga. A Biblioteca Nacional Digital é uma iniciativa importante, mas não será nunca por seu intermédio que se podem popularizar os autores, dadas as naturezas científica e académica das suas edições e pelo facto de não aparecer nos motores de busca.
A leitura de um "clássico" deve ser limpa do aparato académico pelo que o que procuro em linha são versões escorreitas e modernizadas de textos e não edições críticas, que também devem existir em linha, mas que não são aquelas a que me refiro neste artigo. Oriento-me aqui no que diz Italo Calvino: "La lettura d'un classico deve darci qualche sorpresa, in rapporto all'immagine che ne avevamo. Per questo non si raccomanderà mai abbastanza la lettura diretta dei testi originali scansando il più possibile bibliografia critica, commenti, interpretazioni. La scuola e l'università dovrebbero servire a far capire che nessun libro che parla d'un libro dice di più del libro in questione; invece fanno di tutto per far credere il contrario. C'è un capovolgimento di valori molto diffuso per cui l'introduzione, l'apparato critico, la bibliografia vengono usati come una cortina fumogena per nascondere quel che il testo ha da dire e che può dire solo se lo si lascia parlare senza intermediari che pretendano di saperne più di lui."
O que procuro são os textos originais e não notícias sobre os autores. No caso de haver um artigo da Wikipedia sigo as suas ligações, porque é também o que faria um estudante ou um amante de literatura. Por razões que têm a ver com a legibilidade do artigo em papel não coloco aqui as ligações, o que farei quando colocar o artigo em linha.
(Mais uma vez neste tipo de artigos se percebe como faz falta o hipertexto nos media em papel e como ele não pode ser substituído pela colocação dos endereços escritos, que atrapalham a leitura do texto. A possibilidade do hipertexto é o grande argumento, para já, a favor da edição electrónica.)
Começando por Gil Vicente, há uma edição brasileira do Auto da Barca do Inferno nos Google Books e os poemas escritos em castelhano estão publicados em sítios espanhóis. No Projecto Vercial, um projecto privado que colocou mais literatura portuguesa em linha que todas as instituições do Estado juntas, há uns fragmentos dos Autos da Índia e da Barca do Inferno. Existem em linha vídeos com fragmentos de algumas peças de Gil Vicente e, nalguns sítios de poesia e blogues, há partes de peças e alguns poemas. A maioria das ligações do artigo da Wikipedia sobre Gil Vicente não vai dar a lado nenhum, o que significa que há um retrocesso da representação do autor em linha.

De Fernão Lopes há na Rede três crónicas para download na Biblioteca Nacional (ligações do artigo da Wikipedia)e no Projecto Gutemberg, o que, sendo útil, não é o melhor mecanismo para a "leitura" em linha e apenas o Projecto Vercial publica uma página com partes das Crónicas de D. Pedro, D. Fernando e D. João. E nada mais.

De Fernão Mendes Pinto há textos no sempre presente Projecto Vercial e na Biblioteca Nacional Digital, embora as ligações para esta última edição estejam quebradas na Wikipedia, e não seja fácil descobrir nas páginas a que se acede pelas ligações externas onde estão os textos. Partes da Peregrinação foram publicadas num blogue Carreira da Índia e nada mais...

Bernardim Ribeiro está no Projecto Vercial e um ou outro poema disperso aparece em sítios de poesia, em particular brasileiros. Mas o texto da Menina e Moça não se encontra acessível e uma edição que existia de um amador americano tinha muitos erros de transcrição e parece ter desaparecido das primeiras procuras.

A História Trágico-Marítima tem uns fragmentos no Projecto Vercial e uma edição em PDF na Biblioteca Nacional Digital e nada mais. Junto com a Peregrinação, este é um dos casos mais graves de sub-representação de uma obra identitária de Portugal e dos portugueses com muito pequena presença na Rede.

De Francisco Manuel de Melo há também muito pouca coisa em linha: uma referência às obras na Biblioteca Nacional Digital não funciona e escrevendo o nome do autor na procura não dá resultados. Existem edições académicas em PDF das Epanáforas de Varia História Portuguesa e da Carta de Guia de Casados e alguns poemas dispersos em sítios de poesia.

Dos grandes prosadores clássicos em português apenas o padre António Vieira está bem representado, com muitos dos seus mais famosos sermões integralmente publicados, com destaque para as edições brasileiras. É também um dos raros casos onde existe um índice dos seus textos em linha, cuidadoso, actualizado e acima de tudo simples de consultar e útil. "Não é grande desconsulação buscar e não achar?", perguntava o orador no seu Sermão da Primeira Oitava da Páscoa. No seu caso sempre há menos "desconsulação".

Do padre Manuel Bernardes, um autor considerado como canónico para o português escrito, há muito pouca coisa em linha, uns fragmentos de prosa publicados no Projecto Vercial, em sítios brasileiros e apenas numa página brasileira e de índole religiosa se encontram alguns textos de Luz e Calor. A mesma sorte não tem Frei Luís de Sousa, que, se não fosse o Projecto Vercial, praticamente não existia na Rede.

Bocage, o nosso último autor, para ficarmos no limiar do romantismo, está bem representado na Rede, embora padeça de dispersão que, no seu caso, é o preço do sucesso. Muitos dos seus poemas estão em blogues, sítios de poesia, páginas pessoais, embora a poesia erótica e satírica esteja menos representada do que o que se podia prever. O Projecto Vercial tem uma selecção da sua poesia "séria" e em muitos sítios se pode ler a sua Epístola a Marília sob o nome do seu primeiro verso a "Pavorosa ilusão da eternidade".

Os resultados desta pesquisa com métodos comuns que representam as típicas literacias de procura na Rede são, para falar curto e grosso, catastróficos. Nem vale a pena estar a comparar com o que acontece em espanhol, francês, inglês e mesmo latim e grego.

Mas, oi tdbem quem krer falar = ao Bernardes? :- ).

(Versão do artigo no Público de 8 de Dezembro de 2007)

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