ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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2.12.07
Enquanto escrevo decorre uma greve da função pública e os noticiários seguem o padrão habitual de todas as greves recentes: o Governo diz uma coisa, os sindicatos outra, as televisões e rádios fazem uma ronda por escolas, hospitais, tribunais, transportes, com também os habituais resultados, esta repartição funciona esta mais ou menos, esta escola está fechada, aqui não se notou nada. Parece uma recitação de uma peça de cor, em que todos os actores já sabem mecanicamente os seus papéis sem ninguém prestar nenhuma atenção especial ao que se passa. O que sobra é um discurso de nonchalance e desprezo que une os yuppies da direita moderna, os socialistas tecnológicos sem o "bocadinho de socialismo" que Soares desejava e os bem-pensadores da imprensa económica. O que motiva os sindicatos é a defesa de um modelo de sociedade, economia e política que em nada se distingue do do Governo a não ser no peso da repartição dos sacrifícios entre o presente e o futuro mais imediato. Em ambos os casos, Governo e sindicatos, partilham o mesmo "modelo social europeu", só que o Governo pretende geri-lo de forma a adiar os seus efeitos de ruptura para um prazo mais longo, enquanto os sindicatos se preocupam com a geração actual. A célebre sustentabilidade da segurança social é o adiamento programado da ruptura gerada pela conjugação da demografia e da globalização sobre o actual esquema de segurança social, universal e tendencialmente gratuita, ou seja, paga pela redistribuição fiscal dos rendimentos da classe média para manter um sistema "socialista", cujos efeitos de injustiça social são grandes - ricos e pobres beneficiam dos serviços sociais universais e gratuitos, precisem ou possam pagar ou não, em nome de uma ideia de carácter político-ideológico, a de que ao Estado cuida dar a todos ensino, saúde, reformas, subsídios.
No fundo, sindicatos e governo querem o mesmo, só que com tempos diferentes e com benefício de gerações diferentes, ou de tempos diferentes da mesma geração. Os sindicatos que representam a geração actual exigem que esta não seja muito sacrificada em nome do futuro, o Governo coloca mais a ênfase na sustentabilidade a prazo, dez anos pelo menos, e adia os problemas de fundo de insustentabilidade estrutural do "modelo social europeu", onerando mais o presente para fazer durar mais uns anos um sistema que está condenado a prazo. Proclamações grandiloquentes sobre a sustentabilidade da segurança social já tinham sido feitas pelo governo de Guterres e bastaram meia dúzia de anos para se perceber que a ruptura estava para amanhã e não para décadas, e o mesmo irá acontecer com as medidas deste Governo. São paliativos e adiamentos, não são uma política que resolva os problemas de manter competitiva a economia portuguesa e europeia, de modo a garantir bem-estar e progresso social, defrontando o mercado global e o envelhecimento das sociedades pelo aumento da produtividade e pela abertura à competição. Só há uma alternativa a esta política do modelo social europeu e essa alternativa é um consistente, persistente e intransigente programa de liberalismo moderado, reformista, prudente, passo a passo, sempre no mesmo sentido de dar mais liberdade a pessoas e a empresas do domínio abafador do Estado. Quando o PSD propunha menos impostos, obrigando o Estado a diminuir e racionalizar os seus gastos, e quando defendeu contra o PS um sistema misto de segurança social que responsabilizasse os indivíduos por parte do esforço para garantir as suas reformas, dando-lhe a possibilidade de aplicar como entendessem parte do que hoje pagam ao Estado, ia-se no caminho de uma outra política. Hoje, com a aproximação PS-PSD, nem isso há. Mas uma coisa é a similitude de objectivos e visão da sociedade que une a CGTP, a UGT, o PSD, o PS e o Governo e outra são os motivos para que cada um adira à greve. Uma coisa são os sindicatos, outra os grevistas, muitos dos quais fazem greve contra o Governo pelo que este lhes está a fazer no seu dia-a-dia e porque já não têm esperança. Muitos milhares de portugueses vão perder um dia do seu magro salário para protestar, por uma multiplicidade de motivos, e mesmo que os cínicos digam que na realidade estão apenas a comprar mais um dia de fim-de-semana, é absurdo e arrogante tratá-los com o desprezo que circula pelos discursos sobre a greve e que se tornaram habituais nos nossos dias. A arrogância e o desprezo pelas greves está muito para além da discordância com os seus objectivos, é uma manifestação antidemocrática e mais uma, entre muitas, manifestações do tardo-salazarismo inscrito no nosso espaço público e que abomina o conflito como se fosse um mal, e que deseja um mundo sem ondas e sem confrontos, onde os negócios prosperem sem complicações, em que uma mediocridade remediada seja a regra para todos e onde a ausência de escrutínio e vigilância democrática decorrem do peso abafador dos consensos. Um pouco como já acontece com a "Europa". Mas, a realidade que mobiliza os grevistas é incontornável e tem a ver com o empobrecimento dos portugueses. Com a excepção de muito poucos, a maioria dos portugueses estão mais pobres e não tem qualquer esperança sobre o seu futuro. Cada vez mais ameaçados pelo desemprego, pela perda de poder de compra, pelo peso esmagador do fisco, o sentimento e a realidade do empobrecimento atinge as pessoas, as famílias e as empresas. Todas as estatísticas revelam esta crise, e todos os dias saem novas estatísticas mostrando o mesmo caminho: menos "desenvolvimento humano" (um agregado da ONU de vários indicadores), mais desemprego, aumento da inflação, quebra de poder de compra dos salários, menos confiança dos consumidores e dos empresários, mais penhoras, falências, dívidas incobráveis, e os sinais de perturbação social no aumento da criminalidade.
(No Público de 1 de Dezembro de 2007) *
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© José Pacheco Pereira
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