ABRUPTO

8.7.07


UM PROBLEMA PARA AS ELEIÇÕES EM LISBOA: A SEGURANÇA ELEITORAL

O livro de João Ramos de Almeida Eleições Viciadas? O Frágil Destino dos Votos. Autárquicas de 2001 em Lisboa, editado pela Dom Quixote, não mereceria passar despercebido, abafado pelos mil e um produtos menores com que as editoras invadem o mercado, nem ser recebido com indiferença pelas pessoas que se interessam pela coisa pública. Bem pelo contrário, exigiria discussão e não este silêncio entre a ignorância e o incómodo, com que tudo o que é relevante é por nós recebido. O livro já chegou ao mercado há algum tempo e, que se saiba, não mereceu ser tratado como um "caso", como uma "revelação", como um "escândalo", podendo genuinamente, com toda a razão, sê-lo.

O livro representa o resultado de um trabalho de qualidade, na sua origem um trabalho jornalístico no melhor sentido do termo, mas, depois, é um ensaio sobre o que aconteceu, ou poderia ter acontecido, nas eleições autárquicas de 2001 em Lisboa, em particular a questão de saber se os resultados oficiais foram os resultados reais e se houve uma fraude deliberada numa eleição ganha (ou perdida) ao milímetro. Como se sabe, Pedro Santana Lopes ganhou a João Soares pela margem mínima de 856 votos, contribuindo a sua vitória (e a de Rui Rio no Porto) para a crise que acabou com o Governo Guterres e abriu caminho a uma nova maioria PSD-CDS/PP. Refira-se desde já que nada do que se diz a seguir diminui o mérito político de Santana Lopes nas eleições autárquicas de Lisboa, nem é essa a questão em causa, nem em bom rigor o seria, mesmo que materialmente não tivesse "ganho" pela margem dos 856 votos. Aliás, a melhor afirmação do que digo está na atitude de João Soares, que se sentiu como "derrotado", mesmo quando, desde o primeiro minuto, alguns dos seus apoiantes queriam que ele impugnasse os resultados porque estavam convencidos de que teria ganho tão marginalmente como Santana Lopes o fez.
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PPD/PSD-PPM 131135 41.98%
PS-PCP-PEV 130279 41.7%
CDS-PP 23584 7.55%
B.E. 11877 3.8%
PCTP/MRPP 2419 0.77%
P.H. 1352 0.43%
MPT 1347 0.43%
P.N.R. 652 0.21%
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O livro de João Ramos de Almeida analisa duas teses complementares, mas não necessariamente sobreponíveis: a de que houve graves irregularidades na contagem dos votos nas eleições de Lisboa de 2001, que apontavam para, caso fossem corrigidas, uma vitória de João Soares; e que essas irregularidades foram o resultado de uma fraude deliberada. Ambas as questões tinham uma história que vinha desde a noite eleitoral, personificada na acção de António Silva Lopes, um antigo militante do MRPP, que depois se ligou a João Soares e à sua facção dentro do PS, e à Maçonaria. Silva Lopes estava convencido que houvera fraude deliberada no escrutínio eleitoral de 2001 e não parou enquanto não conseguiu que o Ministério Público investigasse o caso, embora não tenha convencido João Soares a contestar os resultados eleitorais. Silva Lopes era uma daquelas pessoas que todas as figuras públicas que são abordadas na rua conhecem, dominado por uma single issue, obcecadas e obsessivas, que não falam doutra coisa e querem veementemente convencer o interlocutor da sua razão e da gravidade do que aconteceu. Conheço vários e são mais numerosos do que parecem, ou então o encontro com figuras conhecidas atrai estas pessoas como magnetes. Também eu o encontrei e tenho arquivada alguma correspondência e correio electrónico sobre o assunto, a que não dei muita importância. Para adensar ainda mais o caso, Silva Lopes apareceu morto em casa, no dia em que deveria falar com João Ramos de Almeida, que adianta que "ainda hoje" se desconhecem os resultados de autópsia, embora nunca tivesse havido suspeitas judiciais de crime. É destes factos coincidentes que se fazem boas teorias conspirativas.
A suspeição de que a morte de Silva Lopes se deveu ao seu "segredo" encontra-se em vários blogues como uma espécie de "lenda urbana". Por exemplo, no blogue Saudades de Antero, Frederico Mira George dedica-lhe um poema:

antónio
sentia-se enlouquecido por saber
aquele
verdadeiro segredo

ele ia revelar em cem páginas
o verdadeiro de um segredo

iam-se passando as semanas
e ele
antónio anunciava que o ameaçavam
que o iam matar que o perseguiam
(outros que como ele sabiam
daquele
segredo verdadeiro)
?mas quem acredita no anúncio de morte
de um homem enlouquecido por um segredo?

ontem o antónio apareceu morto
nu
à frente do seu computador

morte natural – !claro!

antónio morreu de um verdadeiro segredo
As duas teses do livro de João Ramos de Almeida não têm o mesmo sucesso investigativo, ou seja, a análise é muito pertinente quando revela a grave incúria eleitoral e sugere que foi João Soares que efectivamente ganhou as eleições autárquicas de Lisboa em 2001, mas está longe de se sustentar na tese de que houve fraude generalizada e concertada para modificar os resultados a favor de Santana Lopes. Tratando do modo como foi conduzido todo o processo eleitoral, desde as primeiras contagens provisórias aos anúncios televisivos dos resultados, a casos particulares de freguesias que nunca mais "fechavam", até à contagem definitiva e à publicação de resultados, o livro mostra que não há, de facto, segurança nos resultados eleitorais, tanto mais grave no caso de eleições muito disputadas onde os resultados são tangenciais. 856 votos em Lisboa não é nada ou pode ser quase tudo.

O que João Ramos de Almeida revela, com provas documentais, actas, rasuras, documentos com assinaturas que o seus autores negam ter feito, duplicações suspeitas, discrepâncias entre todos os números, somas de eleitores que não correspondem ao universo eleitoral, testemunhos de incúria e sonegação de dados, é muito preocupante. Nessa análise de, pelo menos, uma enorme negligência no tratamento dos dados eleitorais, o autor é acompanhado pelo Ministério Público, que no seu inquérito revelou também graves incúrias e ilegalidades no apuramento dos resultados eleitorais, sugerindo com clareza que os resultados podiam ter sido outros, dada a escassa margem da vitória ou derrota. O que é preocupante nesta análise é que se fica com a sensação, quase a certeza, de que se o mesmo tipo de atenção analítica que as eleições de Lisboa tiveram fosse aplicado a outras eleições, os mesmos problemas de insegurança dos resultados apareceriam como conclusão.

A segunda hipótese do livro, a de que houve fraude eleitoral combinada e concertada, já me parece muito longe de estar provada ou sequer se poder considerar que há sérias suspeitas de que aconteceu. O Ministério Público também não a encontrou, embora haja debilidades no que se conhece do inquérito. Isto não quer dizer que não tivesse havido fraudes pontuais, cometidas a favor quer de um quer de outro candidato por ultrazelosos apoiantes, quase sempre gente dos aparelhos partidários que conhecem bem, e de dentro, os erros e deficiências do sistema eleitoral. A documentação conhecida mostra-o sem ambiguidades e o Ministério Público confessou-se impotente para identificar os culpados.

Mesmo assim, nada aponta para uma operação de viciação concertada dos resultados eleitorais, o que, para ter existido, exigiria um comando, uma sofisticação e uma preparação muito maiores do que aquela que as pessoas in loco são capazes de fazer, tanto mais que teria que ser conduzida em tempo quase real a partir de um centro. Ora não há qualquer prova de que tal existiu, nem o bom senso e o conhecimento da realidade no terreno o revela, até porque, meus amigos!, estamos em Portugal e em Portugal ninguém conspira sem que não se saiba ou se venha a saber, e as conspirações são umas coisas amadoras e adolescentes, mais espertas do que inteligentes, e nunca resultam. Admito que alguns resultados, nesta eleição e noutras, tenham sido "adaptados" até, muitas vezes, mais para garantir uma junta de freguesia do que para o "alto" resultado final, e aí há gente em todos os partidos, e não só no PS e no PSD, mas também no PCP e no CDS/PP que sabem fazê-lo e vontade não lhes falta.

O mérito principal do livro de João Ramos de Almeida é, pois, este mesmo: mostrar que, em eleições disputadas voto a voto, os procedimentos de segurança eleitoral estão longe de ser perfeitos, são até muito débeis. Para além disso, sugere-se, mas não se demonstra. Faça-se, no entanto, justiça ao autor, que publicou um livro que não vive do que sugere, mas das certezas e estas são muito, muito preocupantes. Prestou um serviço ao debate público.

(No Público de 7 de Julho de 2007)

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© José Pacheco Pereira
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