ABRUPTO

2.7.07


OS LIVROS DA MINHA VIDA 7
(OS PROPRIAMENTE DITOS, OS VERDADEIROS, OS DA BAYER)

O Enigma da Atlântida de Edgar P. Jacobs - 1ª parte



Leitor ávido de histórias aos quadradinhos, tendo como pilar da fé desenhada e revelada o Cavaleiro Andante, fui um frequentador diário da hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal do Porto. A hemeroteca, que na altura funcionava numa grande sala à esquerda da entrada do claustro, tinha então quatro tipos de público permanente: os leitores dos jornais diários, quase sempre reformados que se sentavam nas filas da frente; os consultadores do Diário do Governo, à procura laboriosa de uma minudência qualquer que lhes dizia respeito, uma nomeação, uma exoneração, que anotavam nuns papelinhos de agenda; os leitores de banda desenhada ou de revistas populares, como o Século Ilustrado ou a Plateia; e uma meia dúzia de "investigadores", na sua maioria autores de monografias locais, que penosamente procuravam fragmentos de informação nas páginas densas do Comércio do Porto, célebre pela sua rede de correspondentes locais.
Havia habitantes permanentes na sala, o que melhor conhecia foi meu professor de filosofia e era uma personagem de livro: Cruz Malpique. Tinha uma mesa reservada, e os livros e revistas ficavam lá em cima da mesa de uns dias para os outros. Sentava-se e escrevia sem hesitar numa letra fina e cursiva no verso das provas do livro anterior para poupar papel. Usava, e não era o único, umas mangas de alpaca para não polir as mangas do casaco ou da camisa. Assim, sempre sorridente, escrevia livros sobre livros que já ninguém lia.
Fiz parte dos dois últimos grupos, em períodos e idades diferentes, mas não tão diferentes que não acabassem por ser um contínuo. Passei do Mundo de Aventuras, que para mim era já "antigo", para A Batalha, não sei como. Foi como na "passagem do tempo por um banco do jardim de S. Amaro", não se dá por ela, mas está lá.

Cada grupo tinha uma estratégia particular para consultar o que queria, o que era vital para sobreviver no meio de um pessoal inimaginável, todo ele admitido por cunha, para aquilo que se considerava uma sinecura, onde não se trabalhava. Alguns eram praticamente analfabetos e, como "mandavam" nos jornais e nas revistas, só traziam o que queriam. Ao fim de algum tempo percebia-se que certas estantes eram muito altas para justificar o esforço de tirar os grandes volumes encadernados, e "não vinham à consulta" muitas publicações. Eram autoritários com os velhos reformados e com os miúdos, e deferentes com os amigos do senhor director ou com gente com boas roupas. Recebiam gorjetas e dormiam nas suas cadeiras à vista de todos.

Logo, para se ter o que se queria e sem esperar horas, era preciso moldar os pedidos ao empregado do dia e chegar primeiro para se poder escolher. Isto era válido para os jornais do dia, para o Diário do Governo e também para as histórias aos quadradinhos que se encontravam sempre atrás do balcão, devido à procura. Chegava-se lá e perguntava-se pelo que havia, e lia-se o que havia com um olho no parceiro que tinha obtido o que se queria. Quando ele se levantava ia-se a correr atrás para apanhar o volume. Lá fora, passavam os eléctricos em S. Lázaro e ocasionalmente alguém espreitava pelas frestas da janela entreaberta no Verão para ver o que se passava na sala. Na sala passava-se tudo.

(Continua)

*
Há dias reparei que não há séries de TV sobre Engenheiros. Proliferam as de médicos (só urgências) e advogados (de barra), mas nada de engenharia. Não sei se já houve, tenho 29 anos.
Os motivos são óbvios, parece-me. A época em que a engenharia fez as pessoas sonhar passou, e a actividade de um engenheiro é pouco excitante numa série de TV.

Mas ao ver o recorte do Blake e Mortimer lembrei-me como nessa bd e outras, como o Tintin, as explicações técnicas, bem fundamentadas e detalhadas, entusiasmavam. Lembro-me agora do "Segredo do Espadão" e o "Rumo à Lua". Por outro lado, séries de hoje como o 24 Horas ou filmes como o Matrix usam e abusam da tecnicidade, mas sempre de forma superficial.

(Ricardo Resende)

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