ABRUPTO

10.6.07


MEMÓRIAS DOS TEMPOS RADICAIS (1)

Os portugueses começam a escrever memórias. Ou melhor, uma geração de portugueses começa a escrever memórias, uma prática relativamente rara na nossa história recente. Augusto Athayde, Rosado Fernandes, Marcelo Mathias, entre outros, escreveram memórias vindas ou do lado do poder, ou do lado "calmo", da vida familiar, cultural, profissional das últimas quatro décadas. Os nomes antigos não enganam. Todas estas memórias são relevantes, e merecem um tratamento de per si, mas pretendo falar agora da memorialística vinda da oposição ao regime de Salazar e Caetano, cobrindo em particular os anos sessenta e setenta, o que significa essencialmente livros de comunistas e esquerdistas.

Após o livro precursor de José Silva Marques, a primeira e excelente memória "livre" vinda do PCP, sucederam-se as memórias de dissidentes comunistas que começaram finalmente a contar o interior comunista em contraponto com a memorialística oficiosa, centrada na experiência prisional e na versão épica do PCP. Entre outros, os livros de Rui Perdigão, Edmundo Pedro e Raimundo Narciso (sobre a ARA e as dissidências posteriores ao 25 de Abril), que serão em breve seguidos pelas memórias de Zita Seabra, mostram a máquina interior do PCP, com os seus poderes reais e não ficcionais, os rituais e "culturas" circulantes.

Uma novidade neste surto memorialístico são os livros escritos por antigos militantes radicais, naquilo que se pode genericamente chamar "extrema-esquerda". Vários autores já o tinham feito, mas agora, talvez porque a idade já começa a ter peso, começam a surgir mais memórias. O livro já antigo de Saldanha Sanches contra o MRPP, os livros de Fernando Pereira Marques (Maio de 1968 e a LUAR), Sacuntala de Miranda (o MAR e a oposição no exílio), César Oliveira (da tentativa de reanimar um "sindicalismo revolucionário" ao proto-MES), João Bénard da Costa (sobre o catolicismo progressista), mesmo a autobiografia de Maria Filomena Mónica, entre outros, continham elementos para essa memória do radicalismo.


Nos últimos dois anos surgiram memórias de Pinto de Sá (uma memória do CCRML, da prisão e da "traição"), Joana Lopes (uma memória do catolicismo progressista no momento anterior à deriva guerrilheirista e da luta armada), Jorge Silva Melo (um retrato do esquerdismo cultural da geração de sessenta), e agora, o motivo próximo deste texto, o livro de João Freire, marinheiro, desertor, anarquista, salvador da memória anarquista, ensaísta e sociólogo.

Estas memórias pós-comunistas, chamemos-lhes assim, escritas por pessoas que militaram na extrema-esquerda ou na sua mouvance, acrescentam uma experiência nova e uma "história" nova às histórias conhecidas. São também um retrato de uma geração de forte identidade que, partilhando coisas em comum com as gerações anteriores (e com os seus contemporâneos que continuaram "anteriores" como os que continuaram a militância no PCP), se distinguiu muito significativamente no modus vivendi e no modus operandi. Se, no início dos anos sessenta, um jovem comunista e um jovem esquerdista, nas células estudantis do PCP e na Frente da Acção Popular, a primeira organização pró-chinesa, eram bastante parecidos, já depois de 1968, à medida que o trajecto político de muitos esquerdistas já não passava pelo PCP e era mesmo feito contra o PCP, o mundo de um dos estudantes que Zita Seabra controlava na década de setenta, e o de um jovem MRPP na Faculdade de Direito de Lisboa ou de um membro do "Grito do Povo" no Porto, já era muito diferente.

Nos livros mais recentes que referi, há felizmente uma grande diversidade de "experiências", quer em trajectos políticos, quer em locais, quer em ideias, mesmo quando neste último caso é possível ver a profunda marca do tempo dos anos sessenta e do seu ano-milagre, 1968. Quase todas estas memórias são cosmopolitas, um traço comum com muitas memórias comunistas. Nos livros que referi, a excepção mais "provinciana" é a de Pinto de Sá, em parte porque as memórias angolanas do seu autor não eram fáceis de incorporar no quadro da política radical, mas quer Joana Lopes, em Lovaina, Jorge Silva Melo, na "Europa", ou João Freire, em França, fazem um contínuo de territórios muito marcado pela oposição ditadura-liberdade separada pela fronteira dos Pirenéus. Quer por causa do exílio, quer pelo "internacionalismo" político, as memórias esquerdistas e comunistas não só são estrangeiras (Paris, Genebra, Lovaina, Londres, Argel) como são internacionalizadas - os eventos marcantes ocorrem em França, na Alemanha, em Itália, em Cuba, na Argélia, em África, na China, na América Latina. Um esquerdista típico sabia uma quantidade considerável de informações sobre a política radical nos locais mais quentes do globo, embora soubesse bastante menos sobre Portugal, quer por causa da censura, quer pela pouca reflexão existente sobre Portugal e ou portugueses fora da dogmática, quer por "nojo" com o país provinciano e claustrofóbico de onde queria fugir. Nesse sentido, há um contraste nítido com a geração radical da extrema-direita, animada em grande parte pelo grupo à volta de Jaime Nogueira Pinto, que se interessava por África por razões identitárias nacionalistas.

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Dos livros que referi, o de Pinto de Sá é único, não só para o seu tempo, como para toda a memorialística portuguesa, porque é a história de uma vida devastada pela sentimento de "traição", pela violação da regra escrita e não-escrita, do "porte na cadeia", a de que não se falava na prisão sem ter como consequência a vergonha e o ostracismo. Muita gente falou na cadeia, mas o caso de Pinto de Sá vai até ao limite da abjecção, com a colaboração com a PIDE, um fenómeno de identificação com o inimigo que lhe valeu ser preso de novo depois do 25 de Abril e ter que partilhar a cadeia com os seus antigos carcereiros da PIDE.

Sendo uma história de cobardia, é um livro corajoso. Para além da catarse dos eventos traumáticos e mesmo apesar de, na versão publicada e na polémica posterior, o autor ter iniciado um processo de autojustificação, mesmo assim, sobra um relato doloroso, intenso, da perda de auto-estima, de culpa, de quase autopunição. Só quem não conheça a história subterrânea das vidas na oposição é que pode pensar que este sentimento era raro, e desconhecer que muitas vidas foram por ele destruídas, vidas de pessoas muitas vezes brilhantes, cujas expectactivas foram devastadas por terem falado na prisão e pela vergonha interior desse momento de fraqueza. Essas mortes em vida foram e são uma das mais violentas marcas da ditadura e, por si só, uma das razões principais por que a geração que conheceu estes dramas não pode ser complacente com a nostalgia salazarista e pidesca.

(Continua)

(No Público a 9 de Junho de 2007)


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© José Pacheco Pereira
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