ABRUPTO

3.6.07


A CONDENAÇÃO DO CONFLITO COMO INSTRUMENTO DO PODER

O espectáculo pôde ser seguido em directo em várias televisões, com mais ou menos clareza e evidência quanto ao que se estava a passar e é um retrato dos dias de hoje. No dia da greve, o Governo, na figura de dois secretários de Estado mais ou menos obscuros, e a CGTP na figura do seu secretário-geral, Carvalho da Silva, fizeram em directo conferências de imprensa com o balanço da greve.

A primeira no tempo foi a do Governo e foi conduzida à vontade pelos secretários de Estado que fizeram declarações sobre o fracasso da greve, apresentaram o número governamental dos 13 vírgula qualquer coisa de grevistas e passaram o grosso do tempo a tirar "lições políticas" do que se tinha passado. Três quartos das declarações governamentais foram não factuais, mas político-propagandísticas. Mesmo assim não se ouviu uma mosca na sala, que devia estar cheia de jornalistas, atentos, veneradores e obrigados. Estava-se do lado do vencedor, da mó de cima, e ai dos vencidos!

Depois, a parafernália televisiva passou para a sede da CGTP, onde Carvalho da Silva começou a falar da greve, sector a sector, referindo sempre números e casos particulares, o hospital X não funcionou, tantas repartições estiveram fechadas, etc., etc. para fugir a dar um número global, que teria que ser forçosamente ou falso, ou revelador do fracasso da greve como "geral". Mas o que ele estava a dizer continha elementos informativos tanto mais relevantes quanto não tinham feito parte do noticiário desse dia de greve, como por exemplo o cancelamento dos voos nos aeroportos. Era óbvio que ele não queria dar um número genérico, mas também é verdade que o número do Governo é uma construção enganadora para os media. A greve podia ter tido só dez por cento de adesões nacionais e ter sido um sucesso retumbante, se, por exemplo, tivesse encerrado as grandes superfícies, tivesse impedido os sistemas de controlo do tráfego urbano de funcionar, ou apenas e só encerrado as televisões.

Mas o que então se assistiu foi uma cena que não me lembro de ter acontecido nestas conferências de imprensa para os noticiários em directo das oito: os jornalistas a meio da declaração inicial desataram a fazer-lhe uma pergunta: que número a CGTP tinha que servisse de contraponto aos 13 por cento do Governo. Carvalho da Silva pediu que esperassem enquanto continuava com a declaração, mas, de novo, num modo inédito e sem precedente, mostrando aliás a mais pura da má-criação, só se ouviam as perguntas dos jornalistas por cima da sua voz, como se estivéssemos perante uma turba a gritar a um criminoso. Foi uma cena lastimável que nenhum jornalista pode deixar de saber o que significa comunicacionalmente. Uma cena, e isso é que é preocupante, muito significativa dos dias de hoje. Estava-se no lado do vencido, da mó de baixo e, com os vencidos, nestes momentos aperta-se ainda mais o nó da garganta para os ver morrer em público.
Esta cena televisiva na sua explicitude mereceria ser colocada em linha, no YouTube talvez. Valia a pena que se pudesse ver o que se passou ,como ilustração do comportamento inqualificável dos jornalistas presentes.

[Nota: devo a José Carlos Santos a indicação que o video está aqui. ]
A cena das conferências de imprensa foi apenas a face mais visível de mil e artigos condenatórios da greve, mil e uma nota em blogues satirizando a greve e os seus resultados. A maioria que escreve sobre as greves, esta ou outras, tem como atitude típica o desdém. Desdenhar que se use essa forma "arcaica", "antiquada", "comunista" de fazer greve, como se os sindicatos e o direito à greve não fossem uma das características centrais do funcionamento de uma sociedade democrática, um dos instrumentos de defesa de interesses dos trabalhadores. Sim, porque as greves não se fazem em nome do interesse geral, nem do "interesse nacional", não se fazem em nome de nenhuma dessas grandes palavras com que se pretende matar a conflitualidade social e que tão grande circulação têm na vida política portuguesa que adora o consenso e abomina o conflito.

Eu não estou de acordo com quase tudo o que a CGTP defende, sou a favor de muito mais do que a "flexisegurança", a solução de meias tintas em voga, em matéria de lei laboral, mas longe de mim ter desprezo por quem defende as suas ideias e os seus interesses, com as armas que a democracia lhes dá. A saúde da democracia inclui sindicatos fortes, trabalhadores sem medo de fazerem greve dentro da lei, como instrumento dos equilíbrios sociais necessários. Até porque, para muitos trabalhadores, é mesmo um dos poucos instrumentos que têm para se defenderem da indiferença social que os yuppies modernaços que estão à frente do PS revelam. Porque uma coisa são reformas e as suas dificuldades, outra é fazê-las pela lei do menor esforço, ou seja, pelo sacrifício dos mais fracos e dos mais afastados do poder.

Um dos aspectos desse desdém é uma espécie de proclamação universal do egoísmo dos outros, a quem se retira dignidade da intencionalidade dos seus gestos. Não lhes passa pela cabeça esta evidência tão simples: a greve é um dos raros momentos de protesto cívico, seja ela feita por comunistas, socialistas, sociais-democratas, ou gente que está sempre do contra e que custa alguma coisa a quem o faz. Não abundam casos na nossa vida cívica, tão egoísta e escassa, em que voluntariamente milhares de pessoas, os grevistas são pessoas, convém lembrar, prescindiram de um dia de salário para manifestarem uma posição, uma inquietação, qualquer coisa. Mesmo que se admita, e admito-o sem dificuldade, que há uma minoria de grevistas "obrigados" a fazerem greve por medo de ficarem mal vistos face aos seus companheiros de trabalho, em particular nos sectores onde a greve é mais "geral", a maioria faz greve voluntariamente, seja, insisto, por que motivo for, inclusive o de se ser comunista filiado.

Claro que os desdenhosos vão dizer que muitos dos que "fizeram" greve vão depois meter baixa ou apresentar qualquer justificação para não virem nas listas de grevistas e receberem o dia em que não trabalharam. Alguns o farão, uns porque precisam do dinheiro, outros porque estão habituados a este tipo de truques e querem ficar no melhor de dois mundos. Mas muitos fazem-no pela mesma razão que milhares de outros portugueses não fizeram greve: porque têm medo, medo de perderem o seu precário emprego, medo de serem colocados numa lista qualquer de excedentes, medo de serem mal classificados na função pública por um chefe que muito provavelmente é hoje da "cor" do Governo. Este medo explica por que razão a única sondagem realizada mostrava que a maioria dos portugueses apoiava a greve e tão poucos acabaram por a fazer.
Segundo uma sondagem do Diário de Notícias publicada no próprio dia da greve havia uma maioria a favor da greve: 44% dos portugueses concorda e 42% discordam. Os restantes, não têm opinião sobre o assunto. Embora a maioria fosse escassa, é certamente muito superior ao número de grevistas, o que aponta para uma legitimação da greve muito superior à adesão efectiva.
A CGTP tem obrigação de conhecer bem este medo e de saber que na história do movimento sindical raramente têm sucesso greves realizadas em clima de forte retracção social. Contrariamente ao que se possa pensar, as greves têm muito mais sucesso em períodos de vacas gordas do que magras. Em períodos em que o desemprego é uma ameaça real, os trabalhadores naturalmente agarram-se ao que têm e não mostram esperança no futuro.

Ao fim do dia, era evidente que a greve correra mal à CGTP, por mil e um motivos. Mas certamente nenhum desses motivos tinha a ver com o facto de a maioria dos trabalhadores que não fizeram greve acharem que o Governo tinha razão. Desse ponto de vista, a mentira dos secretários de Estado era muito maior do que a omissão de verdade do secretário-geral da CGTP.

(No Público de 2 de Junho de 2007)

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© José Pacheco Pereira
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