ABRUPTO

12.5.07


SABIA DEMAIS


O livro de Jorge Silva Melo (JSM) , Século Passado, é, sob a forma de uma compilação de crónicas, textos de circunstância, fragmentos por publicar, um livro de memórias, quase uma autobiografia. O modo dessa autobiografia está presente na citação inicial de Simone Weil: “A nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção”. Três quartos é muita coisa, se se entender que a frase de Weil se aplica a todos e não apenas aos intelectuais, aos escritores e aos artistas, que são, de algum modo, profissionais da “imaginação e de ficção”. Mas aplica-se aqui como uma luva, ao livro de JSM, um dos retratos mais precisos dos dilemas de uma geração, a dos anos sessenta, em que a difícil fusão do um quarto de vida com três quartos de “imaginação e de ficção” fez mais estragos. E no entanto, tiveram mesmo uma vida...

O que é que se sabe quando se sabe demais? Sabe-se de menos. Não no sentido socrático do “só sei que nada sei”, mas no sentido de que há “saberes” que se perdem, a começar pelo da inocência. O dilema da minha geração, que é fácil reconhecer neste livro, é que ao mesmo tempo que se queria saber tudo (e durante uns anos poder tudo), não se queria perder a inocência, vivia-se na nostalgia de um mundo perfeito e original, que conheciamos dos livros e do cinema, mas que éramos incapazes de sentir, só de “imaginar e ficcionar”. Por isso, a geração dos anos sessenta foi ao mesmo tempo incapaz de ter emoções simples, de ser “genuína” e de ter frieza na razão, de ser cínica. Voltou-se para a utopia, essa perigosa procura de perfeição. Nunca produziu verdadeiros casos de gente a “falar como eu respiro”, nem de cínicos, mesmo depois de velhos, porque é uma geração que envelhece mal. As suas criações ficaram sempre nesse hiato de dois desejos, desses mundos do perfeito sentimento e da perfeita racionalidade, que procurava com afinco, para ser o que não era. Sabia demais. Acabou por isso por mudar mais a história do que a criação, mais a vida quotidiana do que a poética, mais os outros do que a si própria.

Este livro de Jorge Silva Melo é um bom exemplo deste dilema geracional, envolvido na forma muito peculiar desse olhar do saber que é a memória. Não há uma linha deste livro que não esteja impregnada pela memória, a forma agressiva da memória dos cultos, presa a mil e uma referências, mil e um olhares no écrã, no palco, absolutamente fundida pelos livros, apetece dizer de forma grossa e completamente verdadeira, fodida pelos livros. É esta a nossa forma peculiar de perda de inocência, uma logomaquia interior sem fim, que nos fez e onde nos fizemos, e de onde não queremos sair porque sem ela não sabiamos viver no oxigénio comum. E não é, como pensam os ignorantes, name dropping, é mesmo a coisa a sério. Éramos inteiramente, ontologicamente incapazes de ver sem de imediato termos a consciência que o que estavamos a ver era para ser recordado. Tudo tinha tanto sentido, tudo tinha que ter sentido mais do que ser sentido, tudo estava tão cheio de vozes dos livros e dos filmes, que cada passo, cada gesto era a incarnação de mil e um gestos anteriores, simbólicos, incantatórios, “culturais”, de que não nos conseguiamos livrar. O resultado é egotista, solipsista, solitário, quase autista, como as significativas fotografias do autor no fim do livro, onde havendo ocasionalmente outras pessoas, não há mesmo mais nenhuma a não ser JSM representando-se.

No livro de JSM nem sequer é preciso fazer anotações, basta abrir um texto à sorte e lá está o contínuo entre a arte e a vida, sempre mais arte do que vida, ou melhor sempre a vida sentida como a arte e com a arte, como se não pudesse existir sem referências, sem notas de pé de página. Disto não se escapa, nem se quer escapar, mas é complicado e um pouco claustrofóbico, porque poucas coisas são mais claustrofóbicas do que a densidade da”cultura”. Por exemplo: “Há aquele [quadro] de Courbet que, há anos, me persegue.” Por exemplo: “é que nos ateliers – naquele silêncio que tantas vezes Bach visita, ou Mozart...” Por exemplo, sobre uma viagem de Renault 4 (a marca do carro não é irrelevante, este modelo, este carro): “Berlim, Milão, teatros, cinemas. Livros. E o Monte Branco...” . Por exemplo, descendo uma rua de Lisboa: “e quis mostrar-lhe o Lisboa Cidade Triste e Alegre, (...) ou a fotografia de Sena da Silva com o Terreiro do Paço à chuva...” Tudo só existe na vida se existir na “cultura”.

O primeiro texto do livro é fundamental para o perceber, não saiba JSM o papel da abertura, o papel da apresentação, no teatro destas coisas. Mas aqui enganou-se, o texto devia estar no fim e não no princípio do livro. O texto é uma metáfora de todo o livro, a mais trágica de todas, uma espécie de encontro com a morte que nem sequer tem a delicadeza de jogar xadrez connosco, uma cena à Bergman, diria eu se quisesse imitar o JSM, embora seja mais à Fellini .

Relatando um encontro forçado no Nicola, com um daqueles personagens que nos falam obrigando-nos a ouvir, num monólogo obssessivo sobre o destino do mundo e as múltiplas conspirações desse mesmo destino, JSM encontra-se com um homem da sua idade, do seu tempo, da sua geração e acima de tudo com a suas referências. Face a esse personagem, que no fundo lhe quer pedir dinheiro e tentar vender uma jóia para jogar, é como se nós nos vissemos num espelho, um espelho indesejado. E se o nosso destino, fosse esse? E se visto de fora, de longe, do tempo, fosse esse o nosso balanço – uma jóia para vender, uma mendicância difícil de recusar porque é pedida por um dos nossos, um discurso desconexo cheio de nomes e memórias, mas sem verdadeiro sentido? Disto a “cultura” não nos defende. Em boa verdade, a vida também não.

(Publicado no Ipsilon, Público, 11 de Maio de 2007)

Etiquetas: ,


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]