OS LIVROS DA MINHA VIDA 4 (OS PROPRIAMENTE DITOS, OS VERDADEIROS, OS DA BAYER)
Séculos atrás, nesse país estrangeiro que é o passado, eu devo ter sido um espírito simples. Não continuei nessa linha bíblica dos simples, porque se o fizesse seria certamente mais acomodado, percebível, estimável, mais mainstream, menos com coisas. Nesses tempos estrangeiros, eu li com gosto o Coração, essa pieguice patrótica, de fazer chorar as pedras da rua, enquanto sobre elas passavam os valentes soldados do Risorgimento, enquanto as multidões lhes batiam palmas do passeio. Quando um desenho animado, Marco, vagamente japonês, feito a partir de uma história de Edmundo de Amicis passou na televisão, nem queria acreditar que alguma vez tivesse conseguido chegar ao fim do livro azul que tinha dado origem àquela xaropada. Mas a vida é assim e felizmente há amnésias sentimentais, sempre bem-vindas. E no entanto... tenho uma vaga suspeita que um certo tremor patriótico, uma pequena comoção com a minha pobre terra, tem a ver com o Coração...
Já de outros livros desta colecção, os da Condessa de Ségur, tenho a recordação feliz de que eram divertidos. Não me lembro de nada, a não ser de ter rido em silêncio com os "desastres" da Sofia, e de estar contente por poder ler e ter livros para ler. Era um mundo bom. Ainda era um mundo bom.
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Acabo de ler a sua prosa sobre o Coração e fiquei com a ideia de que você não se lembra bem de todo o livro, ou que ficou demasiadamente mal impressionado com os desenhos animados do Marco. Esses, sim, eram uma xaropada para qualquer idade. A verdade é que a única relação que mantinham com a obra do Edmondo de Amicis era apenas uma leve inspiração num dos contos nele narrados, concretamente "Dos Apeninos aos Andes", na tradução portuguesa.
Pode dizer-se que, aos nossos olhos de hoje, o livro parece ostensivamente "patrioteiro", excessivamente moralista, usa a pedagogia da comoção, que é discutível, certamente. Pode também afirmar-se que ele faz parte de uma certa educação muito datada. Mas o livro é muito mais do que isso, mesmo procurando descontar o modo como ele faz parte da minha memória. Acredito que as minhas filhas são emancipadas, não se comovem facilmente e sabem distinguir nas histórias do velho Pai o que é saudade e o que verdadeiramente interessante. E lembro-me bem do que gostaram, na idade certa, de ler "O pequeno escrevente florentino", ou "o pequeno tambor sardo". Concedo que algumas coisas do Coração fazem também sorrir de condescendência perante tanta ingenuidade, mas até esse sorriso crítico vale a pena. Desculpe, mas quando o meu filho fizer dez anos não me estou a lembrar de melhor presente.
(António Lobo Xavier)
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Eu que estou quase sempre de acordo com o que escreve, exprimo uma ligeira discordância em relação ao “Cuore”. É que também é um dos livros da minha vida, tem coisas positivas, não é só nacionalismo meloso. É um compêndio de bons sentimentos, de respeito pelo próximo, pelo diferente, um pouco paternalista, é certo, mas que me fez bem, confesso. Mais tarde descobri na nossa bem-amada “Tropismes” que o Edmundo d´Amicis é autor de uma pequena novela erótica, “Amour et Gymnastique” (só tenho a versão francesa), que até nem é nada má. Também numa noite de televisão, num hotel bruxelense, reparei que foi adaptada ao cinema. Quem diria, um D´Amicis erótico...
Mas todos nós aguardamos, com impaciência, a digressão à volta do Cavaleiro Andante. Sempre quero ver se evoca o “Sombra”, um dos personagens mais inquietantes com que lidei nos “verdes anos”, de tal modo que ainda me arrepia...
(Manuel Lopes Rocha )
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Em 1940, no segundo ano de italiano, no Conservatório Nacional (Secção de Música), o livro de leitura era o Cuore, de Edmondo d'Amicis. Há um blog em que no post No.4 se vê numa má fotografia a capa do livro (edição desse ano). No primeiro post poderá encontrar as primeiras palavras (originais) que você possui em português no seu livro : Oggi primo giorno di scuola. Passarono come un sogno quei tre mesi di vacanza in compagna ! Etc.
Não vi o desenho animado Marco, mas vi na TV (RTP ?) uma adaptação italiana (a preto e branco ?) que é uma incrível (por ser da Itália) xaropada, talvez pior do que Marco. Tenho uma tradução em português, e também nela o belíssimo livro de Edmondo d'Amicis está irreconhecível. Se você o lesse em italiano não lhe chamaria "pieguice patriótica, de fazer chorar as pedras da rua." Estas palavras são um enorme disparate. Um dia terá vergonha.
O blog a que aludo é uma brincadeira. Depois da Conservatório não voltei a pegar na língua italiana – embora seja a de que gosto mais. Tenho imensas saudades do Conservatório. Por causa da música, e por causa da língua italiana.
Quando você chegar, como eu já cheguei, aos 85 anos de idade, terá a surpresa de se encontrar novamente em "tempos estrangeiros", e então chorará por ter deixado de ser o "simples" que foi. Aliás, embora ainda longe, esses seus "tempos estrangeiros" parecem já estarem a sorrir-lhe : "Era um mundo bom. Ainda era um mundo bom".