ABRUPTO

21.5.07


NUNCA É TARDE PARA APRENDER:
"LAS MOCICAS DE AGORA / TODAS VISTEN DE TANGO"


Mark Mazower, Salonica, City of Ghosts: Christians, Muslims and Jews, 1430-1950, Londres, Harper Collins, 2004.

Tenho agora que voltar a Salónica. Quando lá estive, vi igrejas e muralhas bizantinas, e os túmulos dos reis da Macedónia antiga nos arredores da cidade. É verdade que vi as "antiguidades romanas", a Rotonda, o arco de Galerius, e de passagem, como se nada fosse, uma antiga mesquita e um hamam e, ocasionalmente perdida num muro, ou numa fonte, uma inscrição em árabe ou uma assinatura ornada de um sultão. Mas nada de muito turco, nada de nada de judeu e quase tudo grego. Os meus amigos que me guiaram eram gregos e para eles era importante que eu visse uma terra grega, tão naturalmente grega como Atenas, e, de algum modo, Salónica hoje é assim.

O mérito deste excepcional livro, um dos melhores ensaios históricos que jamais li sobre uma cidade, é exactamente mostrar como esta "helenização" de Salónica, a Tessaloniki que os meus amigos gregos me queriam mostrar, é não só recente, como "falsa" em relação à identidade profunda da cidade, feita por gregos, turcos, búlgaros, albaneses e judeus e pela tragédia da sua progressiva, e às vezes muito rápida, desaparição, saída forçada e extermínio. O título remete para as três classificações dos seus habitantes durante quase quinhentos anos: "cristãos", na sua maioria gregos, mas também eslavos, muçulmanos, na sua maioria turcos, mas também uma comunidade muito especial de judeus convertidos ao Islão; e por fim, os judeus, oriundos na sua maioria de Portugal e Espanha.


Nesta foto do início do século XX ainda se podem ver alguns dos muitos minaretes que faziam parte da paisagem urbana. Depois da cidade ser integrada na Grécia foram todos derrubados com excepção de um.
A actual cidade grega fala pelos "cristãos", embora os búlgaros fossem daí corridos na disputa nacionalista pela Macedónia, e não é preciso ir muito longe para encontrar os últimos turcos da Europa na Trácia e em Istambul. Já os judeus esses desapareceram de todo, em cinco semanas de deportação para as câmaras de gás de Auschwitz, pondo termo a uma comunidade que fazia parte indissociável da cidade durante quinhentos anos e a tornava na maior cidade judia do império otomano. Gozando sempre de excepcionais condições de liberdade civil e religiosa, os judeus sentiam-se bem no império otomano, e representavam o sector mais dinâmico da cidade, onde os turcos controlavam a administração e a segurança e os beys eram os proprietários fundiários de uma população rural "cristã". Na cidade eles eram a classe operária, os artesãos, os comerciantes e a elite ilustrada. Tinham jornais e clubes, cinemas e associações profissionais, hospitais e sinagogas.

A política otomana de comunidades religiosas entregava ao rabi (e ao patriarca grego para a comunidade ortodoxa) a responsabilidade do autogoverno religioso e a imposição dos costumes tradicionais. Os judeus sentiam-se muito melhor em Salónica do que na Europa do sul, de onde tinham sido expulsos, e do centro e leste, onde os pogroms se sucediam. Tudo corria bem até que a expansão do nacionalismo helénico desde o século XIX, a decadência do império otomano e a tentativa dos "Jovens Turcos" de criar uma consciência nacional turca para além da identidade religiosa e étnica, os colocava crescentemente na situação de só poderem dizer, no auge do crescendo nacionalista à sua volta, que "eram de Salónica" e não eram nem gregos, nem turcos. A cidade tornou-se grega durante as guerras balcânicas de 1912-3 (ver mapa ao lado).

Vistos pelos gregos como um resquício otomano, tratados de traidores quando o comunismo entrou na cidade pelas mãos dos trabalhadores judeus, acusados de estarem ao serviço da Bulgária e da Turquia de Ataturk, ele próprio nascido em Salónica, acabaram por se ver acusados da "Catástrofe": a expulsão em massa dos gregos da Anatólia, depois das aventuras militares de Venizelos. Os refugiados que vieram em grande número para Salónica, em particular de Esmirna, acabaram por fazer da cidade pela primeira vez uma cidade grega. E tinham contas a ajustar pela sua desgraça. Quando a ocupação nazi chegou e out of the blue os ajudantes de Eichmann acabaram com a Salónica judaica, muitos gregos ajudaram.

Um português que visitasse Salónica nos primeiros anos do século XX não teria dificuldade em entender-se. Ser-lhe-ia oferecido kezo blanco, e poderia encontrar, na letra de um foxtrot, diavlas koketas kon la elegansa el shik das meninas de Paris. O título desta nota sobre as mocicas e o tango é o de uma música popular que deixava o Rabi furioso pelos costumes dissolutos dos seus fiéis. É que em Salónica os judeus falavam o judesmo, uma variante do português e castelhano, que quase desapareceu como língua com o fim da presença judaica na cidade. A facilidade de o ler é tanta que experimentei sem qualquer dificuldade ler o Salom, um periódico judeu de Istambul, que ainda é publicado em judesmo. Na cidade havia sinagogas com o nome de Lisboa e Évora.
Na foto, famílias judaicas fugindo de suas casas depois de um motim anti-judeu instigado pelos nacionalistas gregos.
Se lá voltar, não tornarei a pisar o chão da universidade de Salónica, construída por cima do vasto cemitério judeu, vandalizado e pilhado, sem me lembrar de que muitos dos mortos que lá ainda continuam por debaixo do betão, devem ter tido nomes portugueses.

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© José Pacheco Pereira
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