ABRUPTO

1.4.07


HÁBITOS VELHOS E RELHOS

Os eventos dos últimos dias revelaram a força de duas atitudes populares a que chamarei, por conveniência classificativa, a do "salazarismo difuso" e a do "politicamente correcto". Na realidade, embora pareçam distintas, elas são uma e a mesma atitude, com dois tempos históricos e genealogia diferentes, uma gerada à direita e outra à esquerda, mas ambas muito semelhantes nos seus efeitos sociais. A diferença entre um "salazarista difuso" e um "politicamente correcto" está no estilo e nos temas onde se exerce a sua acção, quase nada mais.

Os eventos a que me refiro são dois: a vitória de Salazar num espectáculo televisivo (e do seu alter-ego no concurso, Álvaro Cunhal) e a histeria absurda com um singular cartaz do PNR. Ambos os eventos criaram uma espécie de minicrise de consciência e muito soul-searching, como distracções activas da coisa pública, em que a comunicação social e os "portugueses" (os portugueses tal como eram invocados no Big Brother pela Teresa Guilherme) são muito atreitos.
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O "salazarismo difuso" vive da reacção demagógica à democracia, e leva o nome de "salazarismo" porque acabou por ser a mais pertinaz herança que Salazar deixou, em grande parte por obra da nossa longa censura do conflito. Construído contra a I República, indo buscar as fontes e as imagens ao século XIX, ao Zé Povinho de Bordalo, com a canga mas sem a manha, à "porca da política", ao cinismo da geração dos "vencidos da vida", acabou por se tornar um instrumento do poder com a censura do Estado Novo. Sobreviveu depois do 25 de Abril como molde para a demagogia que finalmente podia ser expressada de baixo e não imposta de cima.

Muita gente "politicamente correcta" pensava que este "salazarismo" era conversa de taxistas, sem perceber que também era conversa deles. Dêem-lhes um político severo, austero, sacrificado, falando contra a política e os políticos e esse político será popular entre as mesas de café, as cartas dos reformados ao Correio da Manhã contra os "ladrões", os ouvintes genuínos do Fórum da TSF, e as mil e uma expressões populares da demagogia entre "nós" (os trabalhadores esforçados que nunca meteram uma baixa fraudulenta, nunca beneficiaram duma cunha, nunca quiseram fazer uma marquise, nunca receberam qualquer dinheiro sem pagar factura por aqueles trabalhos na canalização, etc., etc.) e "eles" (os ladrões dos políticos).

Não surpreende, por isso, que o espectáculo, qualquer que ele seja, seja o Big Brother ou Os Grandes Portugueses, atice os componentes demagógicos que existem um pouco por todo o lado, como forma dominante da iliteracia em política. O igualitarismo, a inveja socializada, a rasoira por baixo, o ódio ao prazer e à alegria - se o "outro" está feliz é porque "roubou" alguma coisa que é minha -, as emoções a preto e branco, a fixação simbólica em ideias simples e em personagens que aparentam ser "possuídas" por elas tinham que desaguar na apologia simbólica da mantinha com que Salazar protegia as pernas para não ter frio e poupar dinheiro ao Estado, ou no homem solitário da bicicleta atravessando o país à chuva para levar o Avante! ao isolado militante de uma aldeia rural. É difícil não acreditar na metempsicose, ao ver a transmigração da alma do morto Salazar para os vivos e o modo como, votando nele, se pretendeu castigar o presente com a eterna insatisfação reivindicativa dos comuns contra os poderosos, dos iguais face aos desiguais.

Mas este "salazarismo difuso" tem uma nova companhia já há alguns anos, nascida entre intelectuais da esquerda, na Europa e nos EUA, e popularizada pela tropa de choque dos pequenos e médios intelectuais da comunicação social: o "politicamente correcto". Os seus efeitos devastadores chegam ao vocabulário, à codificação dos costumes, à censura, aos tribunais, às universidades, à teologia. As histórias aos quadradinhos de Walt Disney foram expurgadas, os cigarros apagados de filmes antigos, a "negação do holocausto" e do genocídio arménio foram criminalizados, a obra de Fernão Mendes Pinto foi recusada numa colecção da UNESCO pelo seu conteúdo colonialista e agressivo contra os não-europeus, os livros para adolescentes de Enid Blyton foram reescritos, os murais da Assembleia da República representando a submissão de uns negros a Vasco da Gama não podem ser mostrados a governantes africanos, o Charlie Hebdo foi a tribunal por causa das caricaturas que fez a Maomé, a ópera alemã encerrou um espectáculo em que aparecia a cabeça cortada do profeta, e um imenso etc. que cresce todos os dias. No concurso Os Grandes Portugueses, o "politicamente correcto" esteve representado por Aristides Sousa Mendes, a válvula de escape para quem não queria Salazar nem Cunhal, mas queria estar bem com aquilo que achava ser a sua "boa consciência". D. João II não servia, Camões também não e Pessoa muito menos.

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Talvez porque a vitória "incorrecta" no concurso de Salazar excitou o "correcto", tivemos esta semana um exorcismo adequado com a guerra verbal e física ao cartaz do PNR contra a imigração. O cartaz único valeu o seu peso em ouro por cada centímetro quadrado de papel. Teve direito de abertura de noticiários na rádio, horário nobre na televisão, declaração do Governo, da Procuradoria, discursos inflamados na Assembleia, condenações partidárias e um balde de tinta atirado por um amador que quis tapar o cínico "boa viagem" que o cartaz desejava aos imigrantes que lá saíam avião fora. Não passa pela cabeça de todos estes "democratas" que a liberdade de expressão só tem sentido se defender o direito de alguém dizer aquilo de que não gostamos, dentro da lei. E se a lei não permitisse um cartaz como o do PNR, não seria uma lei da democracia.

http://www.cnn.com/TECH/9508/human_ans/man_lucy_med.jpgO senhor do PNR que aparecia no cartaz e que, como todos nós, descende de uma africana provavelmente colorida chamada Lucy, explicou à televisão que gosta muito dos imigrantes, e que até conhece alguns que são boas pessoas. Se estivesse em Paris, diria que gostava muito da sua mulher-a-dias portuguesa, que até era muito trabalhadora. Deixemo-lo no seu mundo povoado de pretos assassinos, árabes bombistas e romenos mendigos profissionais, todos dependurados na nossa Segurança Social, que não é muito diferente daqueles que imaginam o Presidente Bush armado até aos dentes debaixo da cama.

O cartaz foi tratado como se fosse um perigo público. Não é. É a expressão de uma atitude muito minoritária (mas a crescer) que atribui aos imigrantes "maus" a insegurança e o desemprego de muitos portugueses, o que, pura e simplesmente, não é verdade. Se se pensa que esta posição é apenas a do PNR, está-se muito enganado: ainda há pouco tempo Paulo Portas expressou posições semelhantes, e muita gente no PCP, no PS e no PSD pensa o mesmo, embora não o diga. Não é por acaso que se atiram com veemência contra o cartaz do PNR, porque é um exorcismo que estão a fazer.

Não é o cartaz que é um perigo público, o que é um perigo público é a hipocrisia da nossa atitude face à imigração. Esse olhar tem consagração governativa, num daqueles comissariados que institucionaliza a "correcção" em política do Estado. É o olhar "benevolente" e, no fundo paternalista, do complexo de culpa multicultural, do tratamento discriminatório falsamente positivo dos imigrantes que os coloca num gueto que pouco tem a ver com a realidade. É também por isto que a Europa não é o melting pot que são os EUA. Depois, a realidade aparece em cada esquina e é um escândalo de bater no peito.

Quer o "salazarismo difuso", quer o "politicamente correcto" são atitudes contra a liberdade, contra aquilo que é vital numa democracia: um espaço público crítico, dividido, contraditório, competitivo e árduo, sem censura e sem os salamaleques a substituírem o falar livremente, de que tanta falta temos como abominamos. Sem esse espaço, a pasmaceira respeitosa, o sebastianismo preguiçoso, a boa consciência contente são os melhores ingredientes para a mediocridade a que infelizmente estamos tão habituados na nossa casinha portuguesa, pobre, mas honrada, onde não há racistas nem xenófobos e todos queremos o bem dos outros, a unidade, o consenso, em vez de andarem às turras uns com os outros sem cuidar do país. Ámen.

(Adaptado do Público de 31 de Março de 2007)

*
Até que enfim, vejo alguém (que se expressa no mainstream comunicacional) ligar a Vida Nova e Os Vencidos da Vida de Eça, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro (e o Conde Arnoso, o Marquês de Ficalho, o Carlos Lobo d'Ávila, o Lima Mayer, que ninguém, mas absolutamente ninguém, conhece) ao Estado Novo, raciocinio politicamente incorrecto. O que é politicamente correcto é ver neles os grandes percursores avant-la-lettre do republicanismo (por isso restou apenas a memória dos intelectuais que privaram com Antero, mas não a dos nobilitados), em contraposição à visão nacionalista que o Estado Novo deles dava. De um lado as Farpas, do outro a Cidade e as Serras. Prefiro, de longe, os Maias.

Nos Maias está o Sec. XIX português, o qual é segredo de estado. Não se conhece, ninguém viu, é proibido falar-se dele. Fontes Pereira Melo? Alguém que morou nas Picoas? Seguramente nenhum Grande Português.

E no entanto acho o Sec. XIX (o seu final) muito parecido com o periodo actual em que vivemos. Globalização acelerada por novas tecnologias, uns adaptam-se, outros não, quem não se adapta quer sangue e culpados, de preferência o sangue dos culpados, mas se não houver correspondência também serve. No Sec XXI o processo ainda agora começou, uns vão mais adiantados que outros, como acaba não se sabe, sabe-se como acabou no passado. Alguns acham que o passado se tornou impossível. Outros não, mas têm esperança.

Em relação ao cartaz do PNR, o mesmo é gémeo dos do BE, onde a culpa do desemprego é atirada para cima dos patrões que comem tudo. De um lado Os Ricos que paguem a Crise, do outro, os Pretos para a Terra Deles. Venenos diferentes para o mesmo mal - a insegurança das classes médias (baixas?) ultrapassadas pela mudança e com a vidinha a andar para trás.

(Mário Almeida)

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