ABRUPTO

28.3.07


NUNCA É TARDE PARA APRENDER: A CRUZADA QUE NUNCA CHEGOU AO DESTINO

http://pubimages.randomhouse.co.uk/getimage.aspx?id=0224069861&issue=1&size=web&class=books Jonathan Philips, The Fourth Crusade and the Sack of Constantinople, Londres, Jonathan Cape, 2004.

Ele há caminhos destes como nos pesadelos: sai-se dum sítio para ir outro, e anda-se, anda-se, e não se consegue nunca lá chegar. Há sempre qualquer coisa que nos trava o caminho, que nos desvia, que nos leva para onde não deve levar. Os homens (e algumas mulheres) da Quarta Cruzada deviam ir atacar o Egipto para depois libertarem Jerusalém. Nunca lá chegaram por causa de um contrato cujos termos não conseguiram cumprir e porque, para tentar arranjar dinheiro para o cumprir, se foram desviando da sua rota. Pelo caminho mudaram o mundo por onde passaram, durante quase sessenta anos (mais do que o Reich de mil anos), e os seus actos ainda hoje alimentam divisões profundas entre os "latinos" e os "gregos", personificados na Igreja Católica Apostólica Romana e na Igreja Ortodoxa Grega. Há uns anos o Papa pediu desculpas pelos eventos de 13 a 15 de Abril de 1204.

Todas as personagens principais ou são maiores do que a vida ou mesquinhos e brutais. Como acontece na vida real, as coisas misturam-se. Os nobres cavaleiros europeus, flamengos, franceses, alemães, suíços, italianos do Norte, antes de haver todos estes países, mobilizaram-se para libertar Jerusalém respondendo ao apelo do papa Inocêncio III. Embora considerações de ganância e de ascensão social tivessem um papel ao se "tomar a cruz", esta era uma empresa muito cara e arriscada, que poderia levar muitos anos de vida, e que tinha a intensa religiosidade medieval como principal motivação.

O pior foi o resto: os negociadores dos cruzados foram a Veneza encomendar navios e pedir ao doge que apoiasse a cruzada com a sua marinha, a melhor da Europa, e o suporte logístico para o ataque naval ao Egipto. O doge Enrico Dandolo, uma das personagens chave da cruzada, preparou um acordo detalhado com preços e obrigações que era suposto os cruzados do Norte pagarem. Os negociadores, para convencer os venezianos da importância do empreendimento, inflacionaram o número de homens e cavalos que teriam que ser transportados, e assinaram um contrato que muito dificilmente poderiam cumprir, tão elevadas eram as somas necessárias. O doge obteve o apoio dos venezianos numa missa-comício e parou Veneza durante um ano para construir e equipar uma frota gigantesca. E cumpriu.

Quando um número escasso de cruzados apareceu (uns desistiram, outros seguiram o seu próprio caminho para o Levante), os venezianos exigiram o pagamento. Não havia dinheiro. Os venezianos disseram: bom, pagam-nos em espécie atacando Zara que contrariava os interesses comerciais de Veneza. Os cruzados hesitaram porque Zara era uma cidade cristã e o Papa não queria sequer ouvir falar de qualquer desvio ao objectivo da cruzada, quanto mais atacar uma cidade que dependia do rei da Hungria, ele mesmo trazendo a cruz nas vestes. De nada valeu, para garantirem o pagamento aos venezianos, os cruzados conquistaram Zara para Veneza, mas o pagamento ainda era insuficiente.

Apareceu então uma nova proposta: o príncipe Alexius reivindicava o trono imperial dos "gregos" em Constantinopla e estava disposto a dar aos cruzados o dinheiro e meios necessários para seguirem para o Egipto. O trono imperial bizantino fora usurpado, num dos vários golpes palacianos relativamente frequentes de que resultava a cegueira dos seus rivais. Os "gregos" tinham por hábito cegar os seus adversários dinásticos para os tornar incapazes e depois interná-los num convento.

Pressionados pela dívida aos venezianos, entretanto excomungados pelo Papa por terem atacado Zara, os cruzados aceitam ajudar Alexius e pelo caminho conquistar mais terras para os venezianos. Chegados a Constantinopla, verificam que os "gregos" viviam bem com o usurpador e que tinham que abrir caminho a Alexius a tiro de catapulta e flecha contra as poderosas muralhas da cidade. Depois de várias peripécias, que mostraram a maior capacidade bélica dos cruzados - Ana Comnena dizia que um cavaleiro franco completamente equipado a galope conseguia passar por uma muralha dentro - Constantinopla foi entregue a Alexius que tinha que partilhar o poder com o velho imperador cego. Os cruzados, no entanto, ficaram fora da cidade à espera do pagamento e do Inverno. Mais peripécias, hostilidade entre "gregos" e "latinos", golpes e contra-golpes, imperadores nomeados pela turba, assassinados, depostos, mandando no papel ou à espada, mais ou menos amigos do "latinos", até que, ameaçados e sem receber o combinado, os cruzados resolveram entrar em Constantinopla pela força. Tintoretto pintou o ataque com destaque para o papel da frota veneziana.

Apesar de estar previsto em detalhe um saque "civilizado", o saque foi brutal e acompanhado por um massacre, pela violação em massa das mulheres e pelo roubo de relíquias e destruição das igrejas. A imagem dos carros de bois a entrar pela Hagia Sophia dentro, carregados de ouro e prata roubados das paredes e dos altares, entre cruzados bêbados à volta de uma prostituta, está gravada na memória dos descendentes dos "gregos" até aos dias de hoje. Quando as notícias do que acontecera chegaram à Europa e ao Papa, os cruzados tiveram o equivalente à má imprensa dos dias de hoje. O Papa ficou furioso e culpou os venezianos recusando-se a retirar a excomunhão ao doge Dandolo que, quando participou na cruzada tinha entre oitenta e noventa anos, uma idade excepcional para a época e era tão cego (por razões naturais) quanto influente. Acabou por morrer em Constantinopla, e ser enterrado na Hagia Sophia.

O que se seguiu foi um período turbulento de imperadores latinos de Constantinopla, a começar por Balduíno, e que, ameaçado por todos os lados pelos "gregos" escorraçados da sua cidade, os búlgaros e mais tarde os mongóis, acabou por desaparecer. Constantinopla voltou a ser "grega"em 1261, para, menos de duzentos anos depois, ferido de morte o império bizantino, chegar o sultão turco para lhe colocar o ponto final. Uma das coisas que os turcos fizeram foi abrir o túmulo de Dandolo e deitar os seus ossos aos cães.

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De facto, a maior cidade cristã do mundo da altura foi destruída com a Quarta Cruzada (1202-1204). Sucederam-se meses de massacre da população, de pilhagem e destruição de monumentos e bens seculares. Mas é interessante, e até seria motivo de um estudo aprofundado, saber mais sobre a participação do português Fernando Afonso (Afonso de Portugal), à data Grão-Mestre dos Hospitalários (entre 1202 e 1206), na tomada de Constantinopla durante a 4ª cruzada. Este Fernando Afonso, que segundo alguns autores foi o primogénito de Afonso Henriques (filho bastardo que o 1.º Rei teve com Châmoa Gomes), recebeu até, em 1205, uma generosa doação de Balduíno I da Flandres, Imperador Latino do Oriente (de Constantinopla). E há quem defenda que Fernando Afonso, antes de ser nomeado Grão-Mestre, reivindicou o trono português, e chegou a estar em conflito com Sancho I, hipótese que não é muito plausível. No entanto, crónicas da época registam que Fernando Afonso, após renunciar ao cargo que desempenhava na Ordem do Hospital, e ter regressado a Portugal, foi envenenado «pela sua gente». Uma história de vida incrível parece ter tido este filho bastardo de D. Afonso Henriques que desempenhou um cargo da maior importância no mundo da época.

Sobre a Quarta Cruzada é também digna de registo a obra fantástica Baudolino, de Umberto Eco, na qual é narrado pormenorizadamente o saque e massacre de Constantinopla pelos cruzados.

(E. Vieira Novo)

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