ABRUPTO

29.12.06


UM INTELECTUAL ORGÂNICO EUROPEU: JOSEPH RATZINGER (BENTO XVI)

Olhando para 2006 com os olhos do fim do ano, pequena convenção do tempo, há uma figura intelectual que emerge da Europa, onde hoje elas não abundam: Joseph Ratzinger, o actual Papa Bento XVI. Não é tanto o Papa que me interessa em primeiro lugar, nem são motivos religiosos que me levam a destacar Ratzinger, mas sim o seu papel como intelectual na feitura da Europa como nós a conhecemos e do "Ocidente" como nós já não o conhecemos. Este tipo de aproximação a Ratzinger é provavelmente uma das que mais lhe desagradará, após uma vida a combater uma visão que considerará relativista e positivista e que acaba inevitavelmente por minimizar, na sua análise, o homem de fé que o padre, bispo, cardeal e agora Papa é sem dúvida. Ele próprio resumiu algumas das suas recusas em tomar determinadas posições com a afirmação definitiva: "Se o fizesse, não seria capaz de afirmar o Credo." Neste sítio, onde eu paro, começa Ratzinger.

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Pope Benedict XVI: A Biography of Joseph Ratzinger. A biografia de Ratzinger de John L. Allen, um jornalista do National Catholic Reporter e "especialista do Vaticano" na CNN, é um excepcional trabalho jornalístico. Escrita ainda sobre Ratzinger e não sobre Bento XVI, mostra o papel crucial que teve em moldar a Igreja católica no pontificado de João Paulo II e o vigor das suas polémicas com outros teólogos, assim como a controvérsia contínua, na Igreja e fora dela, sobre as suas posições. Sendo um livro de jornalista, interessado mais pelo confronto de posições e opiniões, do que pela obra doutrinária de Ratzinger, mostra um profundo e rigoroso conhecimento dos pontos de teologia, doutrina e tradição envolvidos. É o livro obrigatório sobre este aspecto da personalidade e carreira de Ratzinger, central na sua vida pessoal e espiritual.
Como intelectual, Ratzinger tem um percurso que pode ser comparado com outros intelectuais europeus do seu tempo e há nele, descontada a vertente mais estritamente teológica, uma comunidade de temas muito próxima, por exemplo, da de George Steiner. O facto de Ratzinger ter desenvolvido a sua actuação essencialmente dentro de um nicho ecológico muito particular, a Igreja católica, obscureceu o seu papel de intelectual propriamente dito, sem por isso deixar de ter na história recente uma importância pouco comparável, porque maior, com a de muitos outros intelectuais com uma "cobertura" mais laica, mais mediática, logo mais próxima do "século". A razão pela qual Ratzinger se tornou mais importante nos dias de hoje, embora a sua influência tenha sido já muita nas últimas duas décadas, tem a ver com um efeito de procura de identidade, que o actual conflito cultural e civilizacional reforçou na Europa. Os textos de Ratzinger, os seus temas e o seu posicionamento, tornaram-se mais centrais nas preocupações culturais, intelectuais e políticas dos dias de hoje, concorde-se ou não com eles.
O discurso proferido em Ratisbona foi distinguido com o prémio "Discurso do ano" pelo Departamento de Retórica da Universidade de Tubingen, um dos mais prestigiados da Alemanha. (Informação de Miguel Alves.)
Bento XVI não é um Papa como os outros, não chegou ao lugar de Pedro apenas pela sua actuação pastoral, nem sequer pela ascensão dentro da Cúria romana, mas através do seu papel como teólogo, autor de múltiplos livros e artigos académicos na sua área de especialidade, discursos, entrevistas e debates. No mundo cultural do centro da Europa e nos EUA os seus trabalhos são muito conhecidos, partilhando com outros teólogos como Urs von Balthasar, Kung e Barth o lugar cimeiro de uma disciplina não só religiosa, quando o é, mas também académica, ligada em particular à filosofia.

Para além disso, Ratzinger exerceu durante um período crucial da história recente da Igreja uma outra função típica de um intelectual, a de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a instituição sucessora na Igreja católica, do Santo Ofício, da Inquisição. Como defensor da ortodoxia, o que significa também construtor da ortodoxia, Ratzinger oferece um exemplo de uma tradição puramente intelectual, mais próxima do intelectual "orgânico" gramsciano do que do intelectual ao modelo do Zola do J'Accuse, mais conforme com a nossa tradição afrancesada. A formulação da ortodoxia doutrinária é uma tarefa que contém elementos punitivos, mesmos nos nossos dias, a começar pela retirada da autorização a um teólogo da missio canonica que o impede de ensinar nas cátedras universitárias que dependem da aprovação da Igreja, como acontece com muitas universidades alemãs onde os departamentos de Teologia católica exigem essa autorização. Hans Kung foi uma das vítimas desta situação.

http://images.amazon.com/images/P/0679640924.01._AA240_SCLZZZZZZZ_.jpgA obra de Kung sobre a Igreja católica fornece uma visão alternativa em muitos pontos às posições de Ratzinger, revelando como a interpretação doutrinária seguindo diferentes tradições filosóficas, entre Agostinho e Tomás de Aquino, pode conduzir a resultados muito distintos no entendimento da Igreja, e da sua relação com a sociedade. Kung insiste no carácter da Igreja como construção temporal, em que muitas das opções - os mecanismos de autoridade e hierarquia, o afastamento das mulheres do sacerdócio, a natureza do "apostolado", a infalibilidade papal, etc. - resultam não da Revelação, mas sim da história. Kung lamenta
a posteriori o papel do helenismo em que mergulhou o cristianismo primitivo, enquanto muitas das concepções de Ratzinger valorizam uma "prioridade ontologógica" da Igreja sobre a "igreja" tal como ela é. Ver sobre este aspecto um artigo de Ratzinger (em inglês) The Ecclesiology of the Constitution on the Church, Vatican II, "Lumen Gentium" e o texto "platónico" da Congregação da Doutrina da Fé, dirigido aos bispos "sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão".
O mesmo aconteceu com outras formas de punição, como a obrigação de silêncio, a retratação pública, a retirada do imprimatur a livros publicados e outras. Ratzinger foi o inquisidor, mas não foi o grande inquisidor com que muitos hoje o classificam. Na verdade, a maioria das posições doutrinais que teve que defender eram há 50 anos consideradas tão fundamentais para a fé católica que ninguém pensaria contestá-las e permanecer católico.

Neste duplo sentido da sua acção intelectual, Ratzinger acompanha muito proximamente os tempos, mesmo que a partir de uma dada altura o faça em contraciclo, contra as tendências do "século". É exactamente este contraciclo que o torna interessante na procura de identidade europeia que começou com a crise do comunismo e depois da União Europeia e se acentuou face ao crescente número de conflitos com o islão fundamentalista e a aparição de uma Europa na qual religiões não cristãs e uma alteridade cultural mais agressiva começam a assumir um peso significativo. A Igreja católica foi uma das construtoras da Europa e do "Ocidente", e, mesmo com todas as ambiguidades da sua história e sem pôr em causa as sociedades "descrentes" dos nossos dias, é natural que aquilo que era um pensamento fora do mainstream europeu começasse a migrar de novo para um centro onde sempre esteve. O interesse por Ratzinger vem daí, mesmo pelo Ratzinger inquisidor.
Uma anedota corrente sobre Ratzinger, o "Cardeal Panzer", como lhe chamam alguns dos seus críticos, envolve os três teólogos: Ratzinger, Hans Kung e Karl Barth. Viajavam no mesmo avião para a o Vaticano. O avião caiu e todos apareceram diante de S. Pedro (há uma versão com Cristo no lugar de S. Pedro). S. Pedro sai do seu gabinete e chama Karl Barth; "vem aqui...". Durante uma hora, ouvem-se gritos e barulho e depois Barth sai a chorar dizendo: "Ó, como é que eu pude cometer tal erro de doutrina!". A seguir vai Kung e durante cinco horas ouvem-se gritos e coisas a partirem-se, até que sai dizendo: "Ó, como é que eu pude ser tão tonto!". Chega a vez de Ratzinger. Oito horas de reunião, silêncio. Então a porta abre-se e sai S. Pedro a chorar como um bebé, dizendo: "Como é que eu pude ter sido tão enganado!"
No início da sua carreira, como peritus dos cardeais alemães no Vaticano II, Ratzinger distinguiu-se como um progressista que apoiou muitas das medidas inovadoras do Concílio. Nos seus comentários aos documentos do Concílio, alguns dos quais ajudou a escrever nos bastidores, foi claro na defesa de uma renovação da Igreja, mas rapidamente foi aumentando as reservas sobre os efeitos que as inovações conciliares traziam ao catolicismo e passou de reformador a conservador. Os eventos de Maio de 1968, que viveu directamente na universidade alemã, assim como o crescimento da "teologia da libertação" na América Latina, levaram-no para um caminho de muito maior prudência e acabaram por o tornar no principal opositor dentro da Igreja à multiplicidade de inovações teológicas, litúrgicas e eclesiais que pulularam a partir da década de 70. Aumentando a sua influência no pontificado de João Paulo II, de que era o alter ego doutrinário, Ratzinger acabou por ser a voz da ortodoxia em todas as questões "fracturantes" da Igreja: papel da mulher no sacerdócio, moral sexual, "democracia" ao modelo oriental dos sínodos versus autoridade da Cúria Romana, infalibilidade papal, diálogo inter-religioso, relações com as sociedades laicas do Ocidente.

Ao pensar sobre todas estas matérias, Ratzinger deixou escritos sobre questões morais, religiosas, teológicas, filosóficas, culturais, que, independentemente da crença religiosa de cada um, suscitam problemas muito actuais da acção política, ancoradas em velhas tradições intelectuais europeias. Por exemplo, na sua condenação da "teologia da libertação", nos seus textos contra Leonardo Boff e outros teólogos sul-americanos, Ratzinger travou a dissolução de um acervo doutrinal mais vasto do que a instituição da Igreja em si, que na realidade punha em causa a dignidade da pessoa humana, e a correlativa responsabilidade individual, substituindo-a por uma culpabilidade social baseada numa versão abastardada do marxismo e na apologia da violência. Ratzinger, que achava que os teólogos da libertação tinham "lido teologia alemã a mais", referindo-se a colegas e discípulos seus cujas posições tinham influenciado os latino-americanos, atacou doutrinariamente com veemência os seus defensores não só em pontos de política, como de filosofia e teologia.

Ao se lerem esses textos hoje, à luz do fim do comunismo e do que se sabe das experiências latino-americanas, percebe-se a razão de Ratzinger e a solidez do seu corpo doutrinário.
O Público a 24 de Dezembro publicou uma entrevsita de António Marujo a Johann Baptist Metz, um dos teólogos alemães que influenciaram a "teologia da libertação" que refere o papel da sua experiência da guerra e do Holocausto como fonte para a sua teologia política:

A questão da teodiceia e a sensibilidade da teologia para esse aspecto tornaram-se importantes para mim. Quando o cristianismo se torna teologia, mudamos esta questão sobre a teodiceia, que era a pergunta principal - acerca da justiça de Deus perante os seres humanos que sofrem injustamente. O que define a tradição bíblica, desde o início, é a justiça para os que sofrem injustamente - que foi transformada na reconciliação dos pecadores. (...) O que sempre enfatizei na minha teologia foi: não esqueçamos este grito por justiça. Não apenas um grito político, mas o grito bíblico, já do Antigo Testamento, que regressa com experiências de catástrofes como a de Auschwitz. Este foi um dos temas que nunca abandonei na minha teologia.

Escreve que o olhar de Jesus é para os sofredores e não para os pecadores...

É também para os pecadores, mas a primeira perspectiva messiânica foi sempre a dos sofredores. Esta era a primeira visão de Cristo. Nós mudámos o cristianismo de uma religião basicamente sensível ao sofrimento dos outros para uma religião sensível aos culpados e aos pecadores.

Os cristãos esqueceram o sofrimento dos outros?

Sim. Melhor: claro que nunca esquecemos essa ideia, mas o cristianismo concreto e a sua história, pelo menos como o entendo, atiraram essa dimensão para as traseiras. Eu pretendo trazê-la de novo [ao de cima], precisamente no confronto da actual situação do cristianismo com o mundo globalizado.
(Continua.)

(No Público de 28 de dezembro de 2006)

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