Uma das entrevistas da série que Rui Ramos fez para a RTP teve como "personagem" Jorge Silva Melo. Para além do interesse geral da entrevista, tudo nela me é demasiado próximo para não me sentir muitas vezes a falar pela sua voz, nós que somos da mesma geração e vivemos muito tempo, muita história, muita gente em comum. Pode-se dizer que somos velhos amigos, amigos "antigos" daqueles cujas amizades especiais não necessitam de muita fala (ou se calhar necessitam). Mesmo quando discordamos com veemência e com picardias mútuas, sabemos até que ponto fomos feitos pela mesma massa, pelo mesmo desgraçado país que é tão completamente o nosso.
Na entrevista, Jorge Silva Melo fala do mundo que ambos conhecemos nos últimos anos da década de 60 em Lisboa, no movimento estudantil, na oposição, na Kulturkampf entre o neo-realismo e a pop, entre a Sylvie e os Beatles. Ainda havia "cidade", dizia Jorge Silva Melo, ainda havia bairros, ainda havia cafés, teatros, cinemas. Nos cafés, o lugar emblemático do convívio permitido no tardo-salazarismo, descreve-se o ambiente do Monte Carlo, da Grã-fina, do Vavá, com os seus grupos diferenciados e as suas hierarquias, a que podia somar nos mesmos precisos termos no Porto o Piolho, o Ceuta e o Majestic. Tudo me era familiar naquela conversa, a mesma nostalgia, os mesmos mixed feelings, os sentimentos misturados de um mundo ao mesmo tempo perdido na nossa juventude e tenebroso, porque era o mundo da ditadura, da censura e da PIDE. Nesses mesmos cafés estava a PIDE, como todos nos lembramos, numa mesa próxima, da qual ninguém se queria aproximar, mas que se aproximava de nós pelos ouvidos, e pelo ar improvável dos disfarces do agente em funções, meio amanuense, meio rufia, gente que o próprio salazarismo fino não queria por perto, mas que lhe fazia a sale besogne. Havia muita paranóia, mas, descontada toda a obsessão pela perseguição, sobrava um grão imenso de realidade violenta, bafienta, claustrofóbica, mesquinha e provinciana, que contaminava tudo. Quem o vive, não o esquece nunca.
Jorge Silva Melo falou também desse momento único da experiência estudantil militante dos anos 60 que foi a tragédia das inundações, quando centenas de estudantes organizados pela Igreja e pelo movimento associativo foram ajudar as vítimas ainda a desgraça estava em curso, nas operações de salvamento, de recolha dos mortos, da ajuda aos vivos, de salvamento do pouco que sobrava entre a lama. Nessa intempérie, não muito diferente da que caiu a semana passada, morreu um número desconhecido de pessoas. A censura nunca permitiu que se soubesse o número exacto e muita gente desapareceu desde então.
Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas, e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida, iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos. Os mundos do salazarismo eram tão socialmente estanques que se podia viver sem contactar com os traços mais revoltantes da miséria, que grassava nos arredores de Lisboa, e no interior do país, onde por essa altura centenas de milhares de portugueses faziam a valise para irem para França.
Jorge Silva Melo fala da descoberta deste mundo de pobreza suburbana, que se acentuava no reverso do "milagre económico português" que estava em curso, levando milhares de portugueses a viver em bairros da lata e em habitações degradadas na faixa ribeirinha. As chuvas atiraram-nos para a morte e os estudantes que viam os bairros da lata e os esteiros pela primeira vez encontravam um mundo que não estava em nenhum manual. Sem conhecerem as fábricas, que eram uma reserva do PCP, os esquerdistas que nasciam como cogumelos daquela chuva voltavam-se para aquelas margens, como no exílio, encontravam na emigração nos bidonvilles.Uma nova massa, um novo campo de manobra.
Mas Jorge Silva Melo está (como eu) entre dois mundos: o que gostamos é o que desgostamos. Nas suas memórias entrevistadas está uma contradição que não se sabe resolver. Ele gosta da "plebe", da "canalha" de Gomes Leal, da malta suburbana que fala o português do Kuduro, e queixa-se ao mesmo tempo de que ninguém vai ao teatro nesta "não-cidade" em que vivemos.
“Eu vejo-a vir ao longe perseguida como de um vento lívido varrida cheia de febre, rota, muito além… - pelos caminhos ásperos da História – enquanto os reis e os deuses entre a glória não ouvem a ninguém.
Ela vem triste, só, silenciosa, Tinta de sangue, pálida, orgulhosa, Em farrapos na fria escuridão… Buscando o grande dia da batalha. É ela! É ela! A lívida Canalha! Caim é vosso irmão.
Eles lá vêm famintos e sombrios, Rotos, selvagens, abanando aos frios, Sem leite e pão, descalços, semi-nus… (…) São os tristes, os vis, os oprimidos (…) São os párias, os servos, os ilotas Vivem nas covas húmidas, ignotas (…) Eles vêm de muito longe, vêm da História. Frios, sinistros, maus como a memória Dos pesadelos trágicos e maus.
(Gomes Leal, A Canalha)
Claro que ninguém vai ao teatro, claro que acabaram os cafés (pelo menos em Lisboa), claro que se desertificaram os bairros, claro que acabou a Lisboa dos anos 60, tão íntima como provinciana, onde éramos os absolutos cosmopolitas, exactamente porque os filhos dos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir, os filhos dos emigrantes de Champigny, os filhos da "canalha" anarco-sindicalista e faquista de Alcântara mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente. Eles entraram pelos cafés dentro e transformaram-nos em snackbars e em lanchonetes, entraram pelas televisões e querem os reality shows, entraram pela "cultura" e pela política e não querem o que nós queremos, ou melhor, o que nós queríamos por eles. O acesso das "massas" ao consumo material e "espiritual" faz o mundo de hoje, aquele que é dominado pela publicidade, pelo marketing, pelas audiências, pelas sondagens. É um mundo infinitamente mais democrático, mas menos "cultural" no sentido antigo, quando a elite, que éramos nós, decidia em questões de bom senso e bom gosto.
E agora? Queríamos que "eles" tivessem voz e agora que a têm não gostamos de os ouvir quando o enriquecimento revelado por todos os indicadores económicos e sociais dos últimos 30 anos transformou muitos pobres na actual classe média, "baixa" como se diz na publicidade, nos grupos B e C das audiências. Nós queríamos que eles desejassem Shakespeare e eles querem a Floribella, os Morangos e o Paulo Coelho. E depois? Ou ficamos revoltados ou pedagogos tristes e ineficazes, ou uma mistura das duas coisas. Nós ajudámos a fazer este mundo de mais liberdade e mais democracia, que o é de facto. O 25 de Abril foi o que foi porque a geração de 60 o fez assim. Se os militares tivessem derrubado Salazar nos anos 40 ou Delgado o tivesse feito em 1958, o país seria certamente muito diferente.
O Jorge Silva Melo acha que permanece fiel aos idos de 1968 no seu trabalho teatral, nos Artistas Unidos, no PREC, no Abril em Maio. Eu também. Só que eu penso que não é nem a nostalgia, nem a pedagogia, nem a "animação cultural" para as "massas" que resolvem o dilema. Deixo de bom grado a "animação cultural" filha de Malraux-Lang para os ministérios da indústria e comércio, e se calhar ele também deixa. O que sobra? Uma nova forma de elitismo, a única que salva, no sentido bíblico: a criação. Mas isso é toda uma outra conversa a ter. Entretanto, lá que estamos enredados nas mesmas linhas estamos.
(No Público, de 30 de Novembro de 2006, corrigidas umas gralhas resultantes de uma certa forma de vontade própria que os erros acabam por ter ; onde estava (pensado) "as chuvas atiraram-nos para a morte", eu enganei-me e escrevi "as chuvas atiraram-nos para a norte" e a máquina final escreveu "as chuvas atiraram-nos para o Norte". Na verdade foi para o Sudoeste, para a foz do rio.)