ABRUPTO

31.12.06


LENDO
VENDO
OUVINDO

ÁTOMOS E BITS

de 31 de Dezembro de 2006

Em breve, como de costume,

BOAS / PÉSSIMAS COISAS NA COMUNICAÇÃO SOCIAL PORTUGUESA EM 2006, VISTAS POR UM GRANDE (EM QUANTIDADE) CONSUMIDOR.

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Fui apanhado de surpresa pelas reacções ao enforcamento de Saddam Hussein. Será que isto revela somente que ainda sou muito ingénuo? Quero dizer desde já que estou de acordo com quem defende que seria preferível que a execução só tivesse lugar depois de os americanos terem abandonado o Iraque, que também acho que me pareceu haver uma pressa estranha em
todo o processo e, finalmente, que me inclino a ser da opinião de que ele também deveria também ter sido julgado pelos restantes crimes de que é acusado. Mas toda esta atitude de se considerar bárbara a sua execução e mesmo um retrocesso civilizacional é algo que não compreendo. Em primeiro lugar porque a pena de morte está em vigor em vários países
considerados civilizados (nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo), em segundo lugar porque está em vigor na generalidade dos países da região e, em terceiro lugar, porque, obviamente, a pena de morte estava em vigor no Iraque no tempo de Saddam Hussein. Sendo assim, como é que integrar a pena de morte no código civil iraquiano pode ser um retrocesso civilizacional?

Por outro lado, porque é que os crimes cometidos por Saddam Hussein não provocaram a mesma comoção? Cada vez me parece mais que foi Estaline quem melhor captou a maneira de pensar subjacente a esta atitude com a célebre frase «Uma morte é uma tragédia, milhões de mortes é somente um dado estatístico.» Para além de se ver aqui mais uma vez uma perturbante dualidade de critérios. Por exemplo, Ana Gomes escreveu aqui a propósito da morte de Pinochet que «[d]urante anos viajou, na casa que levei às costas, de país para país, uma garrafa de champanhe. Para abrir no dia em que Pinochet morresse ou fosse preso.» Não consta que a senhora deputada tenha aberto uma pela morte de Saddam, ou que tenha declarado que não abriria a destinada a Pinochet caso este fosse executado. Porque será?

(José Carlos Santos)
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Como seria de esperar num país onde não se aprende a discutir e onde os
sound-bytes são encaradas pela generalidade da população como a forma
suprema de argumentação, o texto que lhe enviei relativo à execução de
Saddam Hussein desencadeou reacções pavlovianas. Quem lesse as respostas
que publicou pensaria que o meu texto defendia a execução, quando em
nenhuma passagem mencionei a minha concordância ou discordância com esta
e fui ao ponto de criticar o facto de ter tido lugar nas circunstâncias
em que teve lugar. De facto, o meu texto não foi, obviamente, um texto a
favor nem contra a pena de morte. Aquilo que afirmei (e que mantenho) é
somente que a expressão «retrocesso civilizacional» não pode, pelas
razões que expus, ser empregue neste caso. De facto, sou da opinião de
que constituiu mesmo um avanço civilizacional, pelo facto de Saddam ter
sido somente executado mas não torturado.

Quanto à longa lista de irregularidades (estou a ser eufemístico)
exposta pelo seu leitor António Cardoso da Conceição relativamente ao
julgamento, agradeço-lhe o trabalho. Só reforçou a minha opinião de que
o julgamento já tinha o desfecho condicionado à partida. Por acaso terá
extraído ele do meu texto que eu pensaria outra coisa?

(José Carlos Santos)

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Com efeito, aquela perspectiva assenta num raciocínio lógico e disciplinar, apontando para as regras pré-estabelecidas - de acordo - que fazem juz ao conhecido ditado de que "quem com ferros mata, com ferros morre". Ora, parece-me que o que devemos por em causa são essas regras, aqui e lá, em qualquer parte do mundo dito civilizado.


Não me bastará, assim, invocar o meu desacordo com qualquer pena de morte, nem por um princípio religioso, nem por qualquer convicção "fundamentalista". O que coloco em causa, se quisermos até, apenas numa perspectiva das tais regras que uma sociedade deve possuir, é se este método é o mais eficaz não para o condenado mas para a "sociedade" punidora.

Sabemos que, dentro de algum tempo, este facto acaba por esquecer. E não servirá mais como exemplo, como medida preventiva para outras atitudes desumanas como as cometidas por aquele condenado. Defendo, isso sim, castigos severos em vida porque aí sofre o prevaricador e sofrem as pessoas em geral na comunidade.

Todos condenámos as atitudes daquele ditador; todos condenamos as atitudes de guerra seja ela onde e quando for.

Não se trata, apenas, de uma questão de direito á vida; trata-se, isso sim, de uma questão de dignidade colectiva que a sociedade, a breve prazo, terá que resolver. Esta e muitas outras sob pena de, a não inverter este rumo, ela própria ficar condenada à sua própria execução.

(Francisco Teixeira)

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Leio as palavras de José Carlos Santos sobre o enforcamento de Saddam Hussein e não as compreendo. Não está em causa, a morte de Saddam, nem estão em causa os modos bárbaros e desumanos como o mundo árabe executa os seus criminosos. Isso é outro tema. Não está sequer em causa a pena de morte, cuja abolição secular faz de nós portugueses, com todo os nossos outros infinitos defeitos, um povo superior.
O que está em causa é a farsa intolerável que foi o julgamento de Saddam. O que está em causa é, essencialmente, o regozijo expresso e infame de Georges W. Bush com o desenlace dessa farsa. Indigna de um líder ocidental e, sobretudo, indigna do presidente da que já foi a pátria da liberdade.

Num Iraque em guerra, todos compreendedríamos que, no momento da sua captura, as tropas americanas tivessem simulado um acto de resistência do antigo ditador iraquiano e o tivessem imediatamente liquidado no acto. Não tendo escolhido essa via, optando por proceder à sua captura, tinham os americanos, como imperativo moral absolutamente categórico, a obrigação de assegurar que esse julgamento fosse justo. Não asseguraram. Desonraram-se e desonraram o povo que representam.
Porque José Carlos Santos Santos não se lembra, porque muitos outros José Carlos Santos não se lembram, valerá a pena recordar aqui que:

• Três advogados de Saddam foram assassinados durante o processo;
• Houve pressões públicas de membros do governo iraquiano, para que o Tribunal produzisse uma rápida condenação;
• O comité de dabaasificação removeu e substituiu, pelo menos, um juiz que se empenhou demasiado em ouvir os arguidos no processo e que, com essa substituição, perdeu o direito de viver na segura zona verde de Bagdad;
• Os arguidos nunca tiveram o direito de conhecer indvidual e especificadamente aquilo de que eram acusados, havendo apenas uma acusação genérica sobre os acontecimentos do processo Dujail?;
• O tribunal não aceitou a junção ao processo de quaisquer provas que pudessem indiciar a inocência dos arguidos;
• As provas da apresentadas pela acusação foram frequentemente ocultadas à defesa e, quando lhe era dado conhecimento das mesmas, não lhe era dado o tempo adequado para preparar o contraditório;
• Houve muitos documentos atribuídos ao governo de Saddam, que fundamentaram a acusação, mas que nunca foram devidamente autenticados, como documentos oficiais do governo de Saddam;
• O julgamento ocorreu no país e na cidade mais inseguros do mundo, sem que às testemunhas de defesa dos arguidos fosse assegurada qualquer protecção.

Podemos nós, os herdeiros da cultura, da civilização e dos valores do ocidente, aceitar a validade deste julgamento? Não, não podemos! Não podemos, de maneira nenhuma, aceitar que Saddam tenha sido julgado da mesma maneira que ele nos teria julgado a nós.

- Tal como um cão!
E era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe.
As palavras são de Kafka, a encerrar O processo. Lembrei-me delas ao ver as imagens do enforcamento da Saddam Hussein.

(António Cardoso da Conceição)

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Que "a pena de morte está em vigor em vários países considerados civilizados", que "está em vigor na generalidade dos países da região" e que "estava em vigor no Iraque no tempo de Saddam Hussein", é a melhor colecção de argumentos que já li a favor da pena de morte. Que não está na maior parte dos países considerados civilizados, que os exemplos que da região vêm não têm sido últimamente os melhores e que o que estava em vigor no tempo de Saddam é precisamente o contrário daquilo a que vulgarmente se chama civilização, parece não ser argumento para alguns. Fez bem, desta vez, a generalidade dos países europeus em condenar a execução. Pela mesma razão por que me indigno quando o poder se verga perante as exigências descabidas (reais ou não) de algum grupo de fundamentalistas, me devo orgulhar quando o mesmo faz ouvir os valores de que me orgulho na civilização a que pertenço.

E depois há o argumento a preto e branco, claro! Quem não ficou no mínimo triste por não ver o homem pendurardo (esperem que há-de vir...) é um esquerdista perigoso que ignora as atrocidades de Estaline e deita foguetes quando morre um fascista. É sempre assim e, pior, há-de ainda por muito tempo continuar a ser; esperem uns dias pela campanha do próximo referendo e verão...

(João Tinoco)

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