ABRUPTO

6.10.06


O FUTEBOL COMO REPOSITÓRIO DOS BONS COSTUMES

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A última coisa que sou é um moralista e muito menos alguém que pense que as sociedades são assépticas, ou sequer que devam ser assépticas. Deve ser tenebroso viver num mundo inteiramente ordenado por curadores da moral pública, numa espécie de Singapura gigantesca policiada por patrulhas do vício, embora o crescente papel dos defensores da sharia vá nesse caminho e a cobardia ocidental lhes abra a porta. Mas exactamente por não ser moralista é que vejo com curiosidade entomológica (sim, de entomologia, "a ciência que estuda os artrópodes sob o aspecto morfológico e biológico e a sua relação com os outros seres vivos") o modo como na sociedade portuguesa as pessoas se relacionam com o futebol. E o modo como este fornece "exemplos de vida", propaganda pelos factos, modelos de comportamentos morais. Bons exemplos, não por serem bons, mas por serem eficazes.

Preciso duas coisas, neste terreno armadilhado com ácido fórmico: não é só em Portugal mas também noutros países, com graus diferentes conforme os mecanismos de socialização distintos, e não se aplica a toda a gente, mas à maioria da gente. Mais uma prevenção por causa do mesmo ácido: o fornecimento de exemplos sociais de malfeitorias não se limita ao futebol, também os políticos, as profissões liberais, os ricos, o jet set, os jornalistas, os artistas de variedades, etc., etc., contribuem. Só que o anátema social que de imediato os atinge é duro e fulminante, o que ainda torna mais reveladora a complacência com o futebol.

Este aspecto de "propaganda pelo exemplo", como diriam os anarquistas, é muito interessante, porque, numa sociedade com uma moral pública feita de bons costumes e respeitinho, ninguém se importa com os desmandos vindos desse exemplo de virtudes que é o mundo do futebol. Exactamente por não ser moralista - repito pela terceira vez - é que o que me parece revelador é a hipocrisia que esta atitude mostra e a forma como a circulação social dessa hipocrisia mostra a superficialidade desses bons costumes: dêem-lhes um campo de futebol, uma discussão de café, uma entrevista televisiva, uma chamada telefónica a fazer umas certas combinações, uma noitada de alterne, horas e horas a fio de conversa no emprego, um megafone na Internet, uma excitação de cachecol e lá vai a boa educação, a moralidade cristã, a cartilha do João de Deus, a prelecção da missa ao domingo, e só ficam os urros colectivos e a suave música tribal do "ó Pinto da Costa vai para o c..." (que no Público não se escrevem obscenidades).

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/18/MattiParkkonen_chimpanze1.jpg/180px-MattiParkkonen_chimpanze1.jpgO noticiário nacional é revelador e uma consulta rápida a essa parte dos jornais pulula de casos virtuosos. Prova um: o Manchester United processou o Benfica, porque, quando os seus jogadores negros apareciam, as bancadas desatavam a gritar umas coisas com us, com a boca atirada para cima e o beiço grosso, que os adeptos aprenderam com os macacos. Percebe-se: macacos nas bancadas num diálogo multicultural com os macacos no relvado. Esta dos macacos já eu vi num dos raros jogos de futebol a que assisti, confesso que a sua maioria em campanhas eleitorais, eis o tributo que o vício paga à virtude, e de clubes de pequena dimensão. Num desses jogos, começaram os macacos sincopados a urrar e eu, que não sabia o que era aquilo, perguntei, penso que ao Hermínio Loureiro, o que é que se passava, se era o hino do clube, e ele, com infinita paciência, explicou-me. O Benfica ficou naturalmente indignado com tão vil acusação e nega que haja racismo entre os seus adeptos, tudo gente que paga as quotas ao SOS Racismo, e presumo que o Manchester também não é um poço de virtudes.
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Adiante, que não faltam exemplos nas fabulosas escutas do Apito Dourado que parece que servem para tudo menos para levar a tribunal os nelas implicados. Prova dois: esta semana ouvi na televisão mais um virtuoso exemplo de um clube que para agradecer aos árbitros os bons serviços prestados lhes garantia "fruta", ou melhor, "fruta para a noite". Mais uma vez me surpreendi pela indigência do nosso futebol que paga um bom resultado apenas com fruta, embora possa pressupor que fruta nocturna deva ser mais rara. Uma pesquisa na Internet sobre o que era essa "fruta nocturna" não deu resultados, pelo que o Google ainda está para apanhar as subtilezas das prendas aos árbitros portugueses. Há um Night Fruit Café, um Starry Night Fruit Cake. Há uma recomendação de que não se deve comer uma Night Fruit Pie antes de se ser operado, o que me parece recomendável, mas nada que explique o sucedido. Ainda me inclinei, metaforicamente claro, a favor da bebida, porque parece que o presidente Pinto da Costa teria sido consultado ou teria perguntado se queriam "café com leite, com muito leite ou mais café".
Podia também ser um caramelo, um doce, uma pastilha, visto que alguém escutado diz ao outro escutado, o presidente, que um árbitro estaria "à espera de um rebuçadinho", ao que lhe foi respondido "pois está-lhe garantido". Aqui está um retalho da vida desportiva ímpar de virtudes frugais. Basta um "rebuçadinho". Só intelectuais maldosos ou apoiantes do presidente do Benfica é que falam da corrupção no desporto.

Afinal, o Record funcionou como aqueles malvados que nos dizem cedo de mais que não há Pai Natal e informou-me da minha angustiante ignorância, tornando prosaica a procura da "fruta nocturna", explicando que o pagamento aos árbitros era feito através de "serviços sexuais com prostitutas", o que alargou a minha noção de serviço público e me elucidou ainda mais sobre o fascinante mundo dos "rebuçadinhos".

Eu sei que isto é chover no molhado. Há altíssima probabilidade de os meus leitores - sim o PÚBLICO é lido por gente normal e não por especialistas em Duns Scoto (embora na semana do discurso papal tivesse as minhas dúvidas) - conhecerem estas e mil e uma outras histórias e terem-se já divertido e encolhido os ombros com elas. É esse encolher dos ombros (pensando bem, hoje que eu estou a encher este artigo de metadiscursos protegidos por vírgulas, parêntesis e travessões, o que é isso de encolher os ombros face à riquíssima linguagem gestual dos jogos de futebol...) que me interessa: ver pais cuidadosos com a educação dos seus filhos, que não lhes permitem um palavrão, ululantes nos estádios mais os herdeiros; raparigas finas nos salões a tornarem-se raparigas grossas nos estádios; gente que não conhece, nem quer conhecer o vizinho e que só se dá com os seus eleitos a confraternizarem com a cerveja convencidos que estão entre os apaches a dançar com os lobos. Chegam ao futebol e vale tudo, a começar pelos olhos.

Os amadores ilustrados pelo intelecto dirão que isto é que revela a "força do futebol" e eu acrescento "e a fragilidade da nossa comunidade, mais a hipocrisia da nossa sociedade". Essa da hipocrisia move-me mais do que a "fruta nocturna" ou os us, porque num país católico, apostólico, romano, na cauda da Europa, e com uma nostalgia mítica do passado, faz estragos consideráveis e comunica com outros pecados sociais que acho mais sinistros, a começar pela inveja socializada e a defesa activa da mediocridade.

Eu sei que a sociologia, a antropologia, a psicologia de massas, a psicanálise social, a etologia dos primatas, a endocrinologia, e muitas mais áreas científicas explicam tudo. Mas um pouco mais consciência da hipocrisia social activa que o futebol propicia teria certamente a virtude de tornar a sociedade mais genuinamente tolerante, o que ela é pouco e... menos moralista. Eu bem vos disse, agora aqui pela quarta vez, que não sou moralista.

(No Público de 5 de Outubro de 2006)

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© José Pacheco Pereira
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