ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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6.10.06
O FUTEBOL COMO REPOSITÓRIO DOS BONS COSTUMES Preciso duas coisas, neste terreno armadilhado com ácido fórmico: não é só em Portugal mas também noutros países, com graus diferentes conforme os mecanismos de socialização distintos, e não se aplica a toda a gente, mas à maioria da gente. Mais uma prevenção por causa do mesmo ácido: o fornecimento de exemplos sociais de malfeitorias não se limita ao futebol, também os políticos, as profissões liberais, os ricos, o jet set, os jornalistas, os artistas de variedades, etc., etc., contribuem. Só que o anátema social que de imediato os atinge é duro e fulminante, o que ainda torna mais reveladora a complacência com o futebol. Este aspecto de "propaganda pelo exemplo", como diriam os anarquistas, é muito interessante, porque, numa sociedade com uma moral pública feita de bons costumes e respeitinho, ninguém se importa com os desmandos vindos desse exemplo de virtudes que é o mundo do futebol. Exactamente por não ser moralista - repito pela terceira vez - é que o que me parece revelador é a hipocrisia que esta atitude mostra e a forma como a circulação social dessa hipocrisia mostra a superficialidade desses bons costumes: dêem-lhes um campo de futebol, uma discussão de café, uma entrevista televisiva, uma chamada telefónica a fazer umas certas combinações, uma noitada de alterne, horas e horas a fio de conversa no emprego, um megafone na Internet, uma excitação de cachecol e lá vai a boa educação, a moralidade cristã, a cartilha do João de Deus, a prelecção da missa ao domingo, e só ficam os urros colectivos e a suave música tribal do "ó Pinto da Costa vai para o c..." (que no Público não se escrevem obscenidades). O noticiário nacional é revelador e uma consulta rápida a essa parte dos jornais pulula de casos virtuosos. Prova um: o Manchester United processou o Benfica, porque, quando os seus jogadores negros apareciam, as bancadas desatavam a gritar umas coisas com us, com a boca atirada para cima e o beiço grosso, que os adeptos aprenderam com os macacos. Percebe-se: macacos nas bancadas num diálogo multicultural com os macacos no relvado. Esta dos macacos já eu vi num dos raros jogos de futebol a que assisti, confesso que a sua maioria em campanhas eleitorais, eis o tributo que o vício paga à virtude, e de clubes de pequena dimensão. Num desses jogos, começaram os macacos sincopados a urrar e eu, que não sabia o que era aquilo, perguntei, penso que ao Hermínio Loureiro, o que é que se passava, se era o hino do clube, e ele, com infinita paciência, explicou-me. O Benfica ficou naturalmente indignado com tão vil acusação e nega que haja racismo entre os seus adeptos, tudo gente que paga as quotas ao SOS Racismo, e presumo que o Manchester também não é um poço de virtudes. Podia também ser um caramelo, um doce, uma pastilha, visto que alguém escutado diz ao outro escutado, o presidente, que um árbitro estaria "à espera de um rebuçadinho", ao que lhe foi respondido "pois está-lhe garantido". Aqui está um retalho da vida desportiva ímpar de virtudes frugais. Basta um "rebuçadinho". Só intelectuais maldosos ou apoiantes do presidente do Benfica é que falam da corrupção no desporto. Afinal, o Record funcionou como aqueles malvados que nos dizem cedo de mais que não há Pai Natal e informou-me da minha angustiante ignorância, tornando prosaica a procura da "fruta nocturna", explicando que o pagamento aos árbitros era feito através de "serviços sexuais com prostitutas", o que alargou a minha noção de serviço público e me elucidou ainda mais sobre o fascinante mundo dos "rebuçadinhos". Eu sei que isto é chover no molhado. Há altíssima probabilidade de os meus leitores - sim o PÚBLICO é lido por gente normal e não por especialistas em Duns Scoto (embora na semana do discurso papal tivesse as minhas dúvidas) - conhecerem estas e mil e uma outras histórias e terem-se já divertido e encolhido os ombros com elas. É esse encolher dos ombros (pensando bem, hoje que eu estou a encher este artigo de metadiscursos protegidos por vírgulas, parêntesis e travessões, o que é isso de encolher os ombros face à riquíssima linguagem gestual dos jogos de futebol...) que me interessa: ver pais cuidadosos com a educação dos seus filhos, que não lhes permitem um palavrão, ululantes nos estádios mais os herdeiros; raparigas finas nos salões a tornarem-se raparigas grossas nos estádios; gente que não conhece, nem quer conhecer o vizinho e que só se dá com os seus eleitos a confraternizarem com a cerveja convencidos que estão entre os apaches a dançar com os lobos. Chegam ao futebol e vale tudo, a começar pelos olhos. Os amadores ilustrados pelo intelecto dirão que isto é que revela a "força do futebol" e eu acrescento "e a fragilidade da nossa comunidade, mais a hipocrisia da nossa sociedade". Essa da hipocrisia move-me mais do que a "fruta nocturna" ou os us, porque num país católico, apostólico, romano, na cauda da Europa, e com uma nostalgia mítica do passado, faz estragos consideráveis e comunica com outros pecados sociais que acho mais sinistros, a começar pela inveja socializada e a defesa activa da mediocridade. Eu sei que a sociologia, a antropologia, a psicologia de massas, a psicanálise social, a etologia dos primatas, a endocrinologia, e muitas mais áreas científicas explicam tudo. Mas um pouco mais consciência da hipocrisia social activa que o futebol propicia teria certamente a virtude de tornar a sociedade mais genuinamente tolerante, o que ela é pouco e... menos moralista. Eu bem vos disse, agora aqui pela quarta vez, que não sou moralista. (No Público de 5 de Outubro de 2006) (url)
© José Pacheco Pereira
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